Catharina Horn. Eu não me surpreenderia nada se vocês não
conhecessem Catharina Horn. Não me surpreenderia, porque ela era minha bisavó e
vocês não têm necessariamente como nem porquê conhecer minha árvore
genealógica.
Mas, e quanto à Hildegarda de Bingen, Margery Kempe, Jane
Anger, Aemilia Lanyer, Margaret Fell, Antonia Bourigue, Eleanor Davis, Anna Trapnel,
Christine de Pizan, Anne Bradstreet, Margaret Cavendish? Aphra Behn?
E quanto à Nísia Floresta, Maria Firmina dos Reis, Carolina
Maria de Jesus.
A anunciação da palavra.
Na história das imagens e na história dos enunciados, a
anunciação é sempre masculina. As coisas insistentemente sopradas no ar pela
boca das mulheres são balbúrdia, insensatez desconcatenada, que se leva décadas
para levar a sério, quando, por felicidade, se as ouve en passant em algum momento, de modo atrasado e em prejuízo de suas
pessoas – porque já morreram, porque enlouqueceram, ou porque já estão fazendo
outra coisa. Na história das imagens e dos enunciados, a dádiva da anunciação é
uma usurpação. É algumas vezes uma mordaça, mas incontáveis e desesperadas
vezes, um ouvido surdo. Como se as nossas não fossem palavras, não de verdade.
Como se as nossas não formassem um sentido, uma frase, um pensamento, cuja
integridade valesse a pena escutar. Aparentemente, não vale mesmo a pena.
Aparentemente, nossas ideias se soltam umas das outras, e todas as letras que
tanto nos empenhamos em juntar uma atrás da outra se desapegam entre si e
tornam-se cacarejos. Na história das imagens e dos enunciados, somos aves. Algumas
de bela plumagem, mas algumas cuja voz vira um eco de nada.
A história da pluma, vejam bem, não é a história das aves
elas mesmas à pena de quem aquela tornou-se a história das belas-letras. A
história da pluma é a história da anunciação, cujo critério é a audibilidade do
grito. Um grito que passa muitas vezes por civilidade, progresso, emancipação,
mas apenas porque o seu tom é o da masculinidade. Na voz de uma mulher, a
anunciação vira histeria, e se perde no horizonte da irracionalidade.
Curiosamente, na história das imagens e dos enunciados, até o grito tem um
significado generificado.
Eu estou falando da história das imagens
e dos enunciados para falar da história da anunciação, da história dos
critérios daquilo que conta como ‘palavra’, como ‘teoria’, como ‘literatura’,
como ‘utopia’, como ‘política’, como ‘racionalidade’. O que conta como
‘filosofia’? E o que conta, também, como ‘história’? A genealogia da
anunciação, politicamente instituída como legítima, não tem mães, avós ou
bisavós. Um paternalismo absoluto. Uma linhagem desprovida de parentescos
femininos.
O que conta como a história da anunciação
quando uma freira é figura de exceção entre patriarcas divinizados, quando a
afronta de Margery Kempe é levar-se a sério a ponto de escrever uma
autobiografia em pleno século VX, quando a pachorra de Jane Anger e Aemelia
Lanyer é a exigência da possibilidade de uma fé feminina dita em voz alta,
quando a teimosia de Margaret Fell é a independência de sua própria devoção,
quando a defesa da inspiração divina torna Antonia Bourigue e Eleanor Davis
lunáticas, mas não proféticas; fanáticas, mas não revolucionárias. E se os
motivos da loucura de Anna Trapnel são as suas visões do paraíso espiritual
feminino, a loucura de Margaret Cavendish são as suas visões do paraíso
político, literário, utópico, de mundos outros que não o nosso, onde escrever constitui
para uma mulher um ato heroico por excelência.
O que conta como literatura, quando a
petulância de Maria Carolina de Jesus é sonhar a invenção de sua língua de cor
preta como poesia?
Mas, sobretudo, que conta como filosofia,
quando ‘filósofa’ é um vocábulo inexistente?
Eu estou falando da história das imagens
e dos enunciados para falar da história da imaginação, da história daquilo que
conta como ‘conceito’ filosófico apropriado ao mundo das ideias, da história
dos conceitos hierarquicamente generificados e atravessados, além de tudo e de
todas as genealogias de matriz matriarcal possíveis e em algum momento
ponderáveis para nós mesmas, pelo poder da razão e pelo poder das razões
determinantes segundo as quais até mesmo o grito das anunciações e dos sonhos
teóricos só é legítimo como reverberação de uma abstração racional-científico-utilitária,
no entanto inteiramente dependente da asserção dos corpos e das bocas dos
homens. O imperativo desde aí canonizado é “não imagine”!
Eu estou falando da história das
anunciações para falar da história daquilo que conta como ‘conceito’ político
apropriado ao mundo dos desejos. Desejos políticos. Desejos utópicos. As
próprias utopias.
Neste caso, o que conta como ‘filosofia’?,
quando os desejos políticos feministas não passam de ‘misticismo’, nas
repetidas alucinações de Teresa de Ávila, ou não passam de ‘literatura’, nas
construções alegóricas de Christine de Pizan, ou não passam de ‘ficção
científica’, nos mundos possíveis de Margaret Cavendish, quando Santo
Agostinho, Thomas More e Alexius Meinong são ‘filósofos’ pelos motivos
proporcionalmente inversos pelos quais as outras são ‘místicas’, ‘escritoras’ e
muito, muito criativas!
O que conta como ‘filosofia’, se a imaginação não conta? E
daí o que conta como ‘margem’ textual apropriada à razão filosófica, se a
imaginação não conta?
O imperativo é “não imagine!”
Não imagine uma cidade de mulheres literatas capazes de
sobreviver por sua conta e risco. Não imagine uma cidade politicamente igualitária.
Não imagine a subversão política das mulheres. Não imagine, filosoficamente.
Ai de mim, que passo a vida imaginando, em cada lufada de
minha respiração. Uma genealogia descendente de mães, avós e bisavós literatas
e filósofas cujas plumas constituam a anunciação da palavra como ‘filosofia’.
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