quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Em direção à uma visão de sobrevivência digna na Terra

Tradução do meu irmão Douglas.

 

Quando eu tinha cerca de cinco anos, tive um gatinho cinza, chamado Popeye. Eu não tenho ideia do porquê. Tenho algumas fotos com ele, tomando sol no quintal. Eu não sei exatamente por quê nunca o esqueci. Talvez por causa das fotos. Assim como acontece com as fotos da minha bisavó. Eu realmente não lembro da minha bisavó, aquela que falava polonês, português, alemão, italiano (este desejo por línguas será herança sua?), aquela velha imigrante vivendo em meio aos campos de cultivo construídos sobre corpos indígenas brasileiros. Mas também nunca a esqueci e ainda sinto terrivelmente a falta dela. Mesmo que eu tivesse cerca de três anos quando ela faleceu. Parece que ela gostava de gatos, histórias e lenços de cabeça. Aí mais tarde teve um gato amarelo chamado O Gato, esse pobre coitado, envenenado e deixado sozinho para morrer pela mão, e quero dizer literalmente, de um homem que eu detestava profundamente, e talvez, agora penso, porque ele era capaz de fazer isso. Tirá-lo de sua miséria. Como isso poderia ser de algum consolo? O Gato trouxe a necessidade de gatos. Então veio a Cathy, e ela era brava, violenta, uma companheira leal, a quem eu vi, pela primeira vez em minha própria vida, como uma criatura viva cheia de ser, dar o seu último suspiro para entregar sua alma – de volta ao universo, quem sabe. Depois veio a Aninha, a quem eu mesma tive que impedir de continuar respirando, vendo-a entregar-se em minhas próprias mãos, com confiança. Eu a traí. Minha própria chance de acabar com a miséria de alguém. Ela tinha quatorze anos. Mas como isso poderia ser de algum consolo? Seis meses depois, eu me senti traída pela minha avó, mãe da minha mãe, que não pôde esperar que eu e meu irmão chegássemos para nos despedir. Fomos pegos pela morte no meio do caminho.

Veja, eu sou vegana há cerca de quinze anos agora, e minha avó, esta mulher camponesa que tornou-se uma porque outro caminho não havia para ela, embora uma vez urbana e instruída, era agora uma mulher migrante e casada, minha avó foi uma das pessoas mais importantes da minha vida.

Eu a tinha visto com a galinha para morrer, os leitões para morrer, a vaca para ordenhar, as horríveis histórias de caça do marido e do sogro, aquele que perdeu uma perna num tiro de caçada.

E, no entanto, como eu poderia virar meu rosto para aquela pipoca afetuosa que ela tinha feito para nós naquela tarde, estourada com banha, quando fui me despedir antes de minha partida para longe? Eu nem tinha certeza se algum dia seria capaz de vê-la novamente.

Eu sinto muita falta dela. E embora eu tenha ficado profundamente magoada por ela ter se calado sobre os habitantes indígenas da mesma terra do meu nascimento, dos quais ainda sou profundamente ignorante, ainda estou realizando coisas e lidando com minha própria vida em uma tentativa desesperada de fazer justiça para ela e para minha mãe, que seriam as melhores lutadoras vegetarianas feministas, as melhores das ouvintes feministas. Se algum dia elas tivessem tido a chance de superar a sobrevivência, a opressão capitalista agrícola, o monoculturalismo esverdeado, a dominação masculina e patriarcal, a baixa escolaridade, o destino estrutural, não planejado. Compreender a realidade, ouvir vozes de animais não humanos. Ouvir vozes de mulheres animais. Mas como isso pode ser de algum consolo?

Tudo isso dói o quanto dói. E não tem nada a ver com meus gatos mortos terem sido seres sencientes, mesmo que seus sofrimentos e bem-estar significassem muito para mim enquanto eles estavam lá, nem com minha avó ter sido um ser racional, inteligente e com interesses próprios - mesmo que as injustiças com as quais ela teve que lidar ao longo de toda a sua vida tenham ferido o coração de sua alma.

Mas tem a ver com almas. Suas almas únicas e insubstituíveis, e os significados que suas almas ofereceram para que a vida tivesse um significado, e os significados que suas almas ofereceram às vidas de todos os seres que os cercaram enquanto estiveram lá, e depois que partiram - porque nós nos lembramos deles mesmo quando não nos lembramos.

Tem a ver com a vida que construímos em conexão - animais humanos e não humanos, humanos e corpos, corpos cheios de ser. Poderíamos muito bem estar falando sobre borboletas, não é mesmo?

Agora meu padrinho está morrendo. Ele teve uma vida cheia de amor - e miséria. Ele perdeu os dedos direitos enquanto trabalhava numa fábrica de sapatos. Uma fábrica de calçados capitalista e monopolista. Ele então se aposentou e encontrou algum conforto no amor de seus netos.

Mas ele agora está vulneravelmente doente. Eu olho para seu rosto seco, suas pernas magras e sua mão nunca reparada, e não posso culpá-lo por ter sido ganancioso por álcool e carne. Posso?

Ele e meu pai faziam todo o trabalho doméstico que minha avó não fazia enquanto trabalhava no campo. Os dois eram meninos autônomos, crescidos para tornarem-se homens autônomos. Ambos estão enfrentando a idade agora e a solidão e a distância da pandemia.

Mas o que diabos isso tem a ver com animais em qualquer sentido?
Vulnerabilidade, eu acho, pode ser uma resposta possível. E cuidado. E ser gentil com as criaturas vivas. Tem a ver com almas. Suas almas únicas e insubstituíveis, e os significados que suas almas oferecem para que a vida tenha um significado, e os significados que suas almas oferecem para a vida de todos os seres que os cercam enquanto estão aqui.

Tem a ver com a vida que construímos em conexão - animais humanos e não humanos, humanos e corpos, corpos cheios de vida.  Homens e mulheres, e seres sem gênero. E nenhuma normatividade social hierárquica. Poderíamos estar falando sobre pássaros e répteis, e bebês, não é mesmo?

E tem a ver também com a necessidade não negociável de um mundo seguro para os trabalhadores não perderem a vida pelo dinheiro que nunca ganham para si; seguro para as mulheres escolherem seus caminhos em seus corações humanos; seguro para os gatos serem amados e lembrados, não como meros animais de estimação, mas como almas únicas e insubstituíveis. Como almas, cheias de ser.

Eu sei.

Como posso ousar narrar gatos, avós e padrinhos no mesmo pedaço de sentimento? E gatos e porcos, vacas, borboletas, pássaros, répteis e bebês? Como ouso?

Bem, veja, tem tudo a ver com a vida de significado que construímos em conexão - ou, como a vulnerabilidade deixa claro, em todas as ocasiões, tem a ver com nossas falhas em oferecer justiça. Mas justiça como amor e generosidade corporificada, não como lei, norma ou julgamento. Nossas falhas em respondê-los como habitantes compartilhadores do mundo em que vivemos. Justiça como possibilidade de ver “o outro” em sua realidade mais plena e profunda. Justiça como atitude para com uma alma.

Então, não há outra pergunta aqui além desta: somos capazes de fazer isso?

De salvar a nós mesmos e aos valores humanos e não humanos em vista de uma sobrevivência digna na Terra? Podemos nos salvar diante de nossas ações de violência e injustiça?

Towards a view of a dignified survival on Earth

 

When I was about five, I had a little grey cat, named Popeye. I have no idea why. I have some pictures with him, sunbathing in the backyard. I don’t exactly know why I never forgot him. Maybe because of the pictures. As it happens with the pictures of my great grandmother. I don’t really remember my great grandmother, the one speaking Polish, Portuguese, German, Italian (is this craving for languages her inheritance?), this old immigrant woman living in the midst of the crop fields built over Brazilian indigenous bodies, but I do never forget her either and I do still miss her terribly. Even if I was about three when she passed away. It seems she was fun of cats, stories and headscarves. Then later on there was this yellow cat named The Cat, this poor guy, empoisoned, and left alone and to die by the hand, and I mean literally, of a man I profoundly disliked, and maybe, now I think of it, because he was capable of doing it. To put him out of his misery. How could that be of any consolation at all? The Cat brought the need for cats. Then there was Cathy, and she was a brave, violent, loyal companion, whom I saw, for the first time in my own life, as a living creature full of being, to breath her long last breath into giving her soul away – or back to the universe, who knows. And then again, there was Aninha, whom I myself had to bring to breath no more, watching her to give herself to my own hands, trustingly. I betrayed her. My own chance of putting someone out her misery. She was fourteen years old. But how could that be of any consolation at all? Six months later, I felt betrayed myself by my grandmother, my mother’s mother, who could not wait for me and my brother to arrive to say goodbye. We were caught by death halfway.

You see, I am a vegan for something like fifteen years now, and my grandmother, this peasant woman, turned one because there was no other path to go for the, although once urban and learned, now married and migrant woman she was, my grandmother, was one of the most important people in my life. I had seen her with the chicken to die, the piglets to die, the cow to milk, the horrifying hunting stories of her husband and of her father-in-law, the one who lost a leg in a hunting shooting.

And yet, how could I turn my face to this affectionate evening popcorn she had made for us, popped with lard, when I came to say farewell before my long-distance departure? I was not even sure I would ever be able to see her again.

I do miss her terribly. And although I was deeply hurt by her silencing about the indigenous inhabitants in the very land of my birth, of whom I’m still so profoundly ignorant, I am still accomplishing things and coping with my own life in a desperate attempt to do justice to her, and to my mother, both of whom would make the best of feminist vegetarian fighters, the best of feminist listeners.

Had they ever had the chance of surmounting survival, agricultural capitalist oppression, greenish monoculturalism, male and patriarchal dominance, low education, structural, unplanned destiny.

Understanding reality, hearing the non-human animal voices. Hearing animal women voices.

How can that be of any consolation at all?

This all hurts as much as it does. And it has nothing to do with my dead cats to have been sentient beings, even if their sufferings and well-being meant a lot to me while they were there, nor with my grandmother to have been a rational, intelligent and a being with interests of her own – even if the injustices she had to deal with along the whole of her life injured the heart of her soul.

But it has to do with souls. Their unique, irreplaceable souls, and the meanings their souls offered for life to have a meaning, and the meanings their souls offered to the lives of all the beings surrounding them while they were there, and after they parted – because we remember them even if we don’t.

It has to do with the life we build in connection – human and non-human animals, human and bodies, full of being bodies. We could as well be talking about butterflies, couldn’t we?

Now my godfather is dying. He had a full life of love – and misery. He lost his right fingers while working himself up to a shoe factory. A capitalist, monopolist, shoe factory. He then retired and found some comfort in the love of his grandchildren. But he is now vulnerably sick. I look to his dry up face, his skinny legs, and his never repaired hand, and I cannot blame him for having been greedy about alcohol, and meat. Can I?

He and my father used to do the whole of the housework my grandmother would not do while working in the fields. So, they were both autonomous boys, grown up to be autonomous men. They are both facing age now, and pandemic loneliness and distance.

But what the hell does that have to do with animals in any sense?

Vulnerability, I guess, might be a possible answer. And care. And been kind to living creatures.

It has to do with souls. Their unique, irreplaceable souls, and the meanings their souls offer for life to have a meaning, and the meanings their souls offer to the lives of all the beings surrounding them while they are here.

It has to do with the life we build in connection – human and non-human animals, human and bodies, full of being bodies. Men and women, and no gender beings. And no social hierarchical normativity. We could be talking about birds and reptiles, and babies, couldn’t we?

And it has also to do with a non-negociable need for a world which is safe for workers not to wear their lives for the money they never make enough for themselves; safe for women to choose their paths out of their human hearts; safe for cats to be loved and to be remembered, not as pets, but as unique, irreplaceable souls. As souls, full of being.

I know.

How do I even dare to narrate cats, and grandmothers, and godfathers in the same piece of feelings? And cats, and pigs, cows, butterflies, birds, reptiles and babies? How do I even dare?

Well, you see, it has all to do with the life of meaning we build in connection – or, as vulnerability makes it clear, on every occasion, it has to do with our failings to offer justice. But justice as love and as embodied generosity, not as law, or norm, or judgement. Our failings to respond to them as sharing inhabitants of the world we live in. Justice as a possibility of seeing “the other” in its fullest, deepest, reality. Justice as an attitude towards a soul.

 

So, there is no question here other than this one: are we able to do it?

 

To save ourselves and human value and non-human value in view of a dignified survival on Earth? Can we save ourselves in the face of our actions of violence and injustice?

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Linguagem, imagens e poder: uma mirada feminista


 A linguagem é a morada do poder.

Eu tenho insistido repetidamente, de modo enfático e às vezes enfadonho, nos poderes mágicos da linguagem para criar, moldar, estampar e modificar a realidade e o mundo. Nos seus poderes mágicos para marcar, em nossas mentes e em nossos corpos, as imagens persistentes dos nossos fundos imaginários abissais e dos nossos cenários cotidianos de vivência incontáveis vezes violenta de generificação, exclusão e aprisionamento. Eu tenho insistido nas inflexões de poder mais ou menos camufladas nas entranhas das palavras. E nos reflexos imagéticos que se avolumam em nossa cultura. Nada aí é inocente. Nem isento de responsabilidade, compromisso e comprometimento.   

A linguagem é a morada da política.

A linguagem cria o mundo quando separa em partes hierarquicamente distintas o que dignifica mais e o que dignifica menos e o que vale o valor exato do capital – que é sempre financeiro, diga-se de passagem. Sinceramente, estas distinções fariam mais sentido se a Terra fosse mesmo plana. Porque na esfera em que vivemos, circulamos todos atraídos pela mesma força e pela mesma carga que nos ata a uma superfície vulnerável às nossas próprias ações. E às imagens polarizadas que tornam a nós mesmas vulneráveis. Eu falo, aqui, para lembrar as vozes que há muito tempo se calaram porque sufocadas por suas mãos e seus dedos compridos de homens brancos colonizadores que, por sua vez, sempre falaram também violentamente. E eu falo aqui, portanto, da violência das dicotomias que nos criam como corpos faltantes, como corpos faltantes em humanidade, em cognição e em ação, mas apenas porque também nos criam como imóveis, castas, passivas, ingênuas, pacientes, decorosas, lacrimosas, emotivas, frágeis, suscetíveis, sugestionáveis, influenciáveis, fofoqueiras, bisbilhoteiras, faladeiras, desmedidamente curiosas quando a curiosidade pode ser uma virtude, quando, vejam bem, ‘comadre’ é um sinônimo para ‘maledicente’, e desde aí descontentes, insatisfeitas, ingratas, invejosas, impulsivas, incontidas, sexualmente insaciáveis, corporalmente imoderadas e essencialmente lascivas, devassas, e por isso eu me recuso a ceder a uma bebida sexista, racista e coniventemente objetificadora, e desde aí, vejam, vingativas, obcecadas, perturbadas, histéricas, loucas, doentias, indisciplinadas, descontroladas, rebeldes, selvagens, bruxas, politicamente incapazes, socialmente subversivas. Ora, como permitir qualquer espaço de poder a seres que beiram tamanha animalidade? Tamanha inumanidade? Como permitir qualquer acepção de legitimidade às suas palavras? Não me parece à toa que nossas palavras passem ora por esturros incompreensíveis ora por silêncios presos na garganta. Mas como a nós não podem tornar pedras e como no fundo precisam dos nossos úteros para a perpetuação do patriarcado classista e racializado, trata-se então de criar uma linguagem que fale por sobre nossas vozes e que masculinize aqueles conceitos que autorizam e fundamentam a genuinidade do poder. E a genuinidade das palavras. E da política.

Pensem nas oposições adjetivas a tudo isso que nos feminiza tal como pretende o Malleus Malleficarum, mas também Rousseau, Kant, e antes ainda Aristóteles, Homero e Francis Bacon, e teremos a figura, outorgada pela linguagem e replicada pelas imagens da nossa cultura, do que é um ‘ser humano’. Além disso, essa figura tem uma localização geográfica muito específica.


Esta é América, selvagemente despida em seu idílio canibalista. Ela seduz, enfeitiça, resiste. É preciso domesticá-la e, se isso não for suficiente, queimá-la junto de outras bestas.

[America. Gravação de  Theodor Galle a partir de um desenho de Jan van der Straet [Stradanus], c. 1575.]

Esta também é América. 

   

[Exaltação a Mãe Preta : o símbolo de uma raça, em pról de uma nacionalidade. (Novo Horizonte, ano VIII, nº61, set/1954).]

E esta também. 
 
 
E também esta. 
 
 
 
Esta, por sua vez, é Ursula Hamdress. Repito: Hamdress. Ela está sedutoramente posta aí para se comer, em todos os sentidos do verbo. Mas notem que isto não passa por canibalismo, apesar de nós todas estarmos ali, como referentes ausentes – nas palavras de Carol Adams.
 
 
 

E eu trago isso aqui para se ver o modo como o corpo é de fato a superfície fundacional sobre a qual se constroem todos os significados da nossa linguagem. E sobre isso também tenho insistido recentemente.

Porque a linguagem molda o mundo sobre a plasticidade dos nossos corpos, que se conformam, que se confinam e que se ajustam à disciplina das palavras que, lembrem-se, são hierarquicamente legitimadas por uma conceituação de fundo, aquela da outorga política do poder. E é assim que ela molda também os nossos corpos e os seus invólucros e as suas entranhas. E é por isso que nossas reações ao corpo vivo, como diria Elisabeth Costello, mostram nossa aderência àqueles valores que nos tornam mais ou menos ‘humanos’ e mais ou menos passíveis de ‘dignidade’. Que a subversão política consista em fazer ver a dignidade da ‘vida’ me soa desalentador e, ao mesmo tempo e por isso mesmo, extremamente conforme à construção moderna da linguagem, à construção moderna da linguagem filosófica, em suas definições bipartites reproduzidas na linguagem beligerante dos direitos, que só podem ser reivindicados em voz alta – portanto, apenas nos estreitos e confinados espaços do poder. Dadas as nossas qualificações, nós na verdade não nos ajustamos a estes espaços. Mulheres, mulheres pretas, mulheres indígenas, as selvagens, as bruxas e seus asseclas, as mulheres e os outros animais não humanos, não cabem e não se ajustam, como meros corpos que são, como meros corpos sem acepções de vida e dignidade tal como estas são franqueadas pela lógica impassível e inabalável de uma Racionalidade com letra maiúscula, não cabem e não se ajustam às configurações modernas, e contemporâneas ainda, dos valores classificáveis, instrumentais, mecânicos, utilitários – sempre não imanentes – do mundo. O que eu quero dizer com tudo isso, em última instância, é que nossos corpos são moldados de tal forma pela linguagem, que ‘corpo’ e ‘vida’ são moldes conceituais que servem aos catálogos do poder, e que eles coincidem apenas quando a ‘vida’ pode ser justificada por aquelas palavras genuínas, branqueadas e masculinizadas, da linguagem.


  [Arrufos. Belmiro de Almeida, 1887.]
 

Deixem-me exemplificar: o conceito de ‘vida’ parece ter cada vez menos aderência conforme os corpos passam da branquitude à negritude, da heterossexualidade à homossexualidade, da juventude à velhice, da aparência de riqueza à pobreza; conforme os comportamentos sejam mais espontâneos, mais próximos de uma vivência afetiva, não uniformemente regrada, e que acompanha a alegria gratuita da animalidade, por exemplo; ou conforme uma mulher vá despindo suas camadas de roupa, de maquiagem, de adereços, da “feminilidade” à “vulgaridade”, da domesticidade à prostituição, da urbanidade ao campesinato, da beleza à feiura, do encoberto à nudez. Não fosse assim, a violência não se assentaria com todo o seu peso hierarquicamente, e estruturalmente, sobre os corpos que se confundem com as nomenclaturas da natureza, que é duplamente rebaixada ao servir de pejorativo para a desqualificação humana, em mais um dos seus desdobramentos dicotômicos. Piranhas, cadelas, cachorras, porcas, vacas, galinhas, jumentas. Também elas, as outras fêmeas da Terra, tem parca ‘vida’ sobre seus corpos dispensáveis, matáveis, comíveis. E a nossa cultura do estupro, mas também a nossa cultura carnivorista, pecuarista e extensivista, – lembrem-se agora de Ursula Hamdress – molda as mais banais das nossas ações cotidianas sobre os protótipos dos meros corpos ou dos corpos vivos, estampando sobre eles o selo da sua valência, e do seu merecimento.

É neste sentido que o molde e a estampa da linguagem sobre a realidade se completam: a marca, impressão ou etiqueta incorporada pela criatura, sobre sua pele de bicho ou de gente, ou de mero corpo, como também sobre a expressão mesma do seu silêncio ou da reprodução das palavras que, ordenadamente, lhe cabem, define os seus espaços ocupáveis, os seus movimentos nestes espaços, a sua máxima e mínima liberdade, o seu máximo e mínimo poder, as suas fronteiras de humanidade e de animalidade, de publicidade e de privacidade, de manifestação política e de afeto.

Dito de outro modo, a estampa da feminilidade heteronormativa define os nossos modos de vestir, de calçar, de comer, de beber, de expressar, de sentar, de falar, de sentir e de pensar também. Ou sobretudo de sentir e de pensar, já que os moldes da feminilidade heteronormativa informam e enformam nossas corpos e nossas mentes e nos aprisionam aos conceitos inferiorizados da linguagem e às imagens reflexas repetidas ao infinito por nossa própria adesão ou até mesmo por nossa resistência.

E eu estou pensando aqui nas concessões do poder que cobram de volta o seu preço, pela via da linguagem, das imagens ou das soluções de exclusão definitiva, e esta, a exclusão definitiva, seja como fraude, como impeachment ou como assassinato. Pensem na gigantesca assunção de poder à sabedoria das mulheres tornadas ‘bruxas’, exatamente por esse motivo, e nos significados estampados sobre seus corpos e sua linguagem prenhes de vida e de morte, do nascimento e da cura ao aborto. O preço, aqui, para além do ultimato das fogueiras, é a cooptação do seu poder para sua própria “reprivatização”, como diz Mary Beard, ou para sua domesticação juntos aos seus iguais em banalidade como gatos, cachorros, bodes, morcegos e afazeres do “lar”; “qual o significado de sentar no próprio emblema do humilhante trabalho doméstico e sair voando?”, pergunta Stacy Schiff. 

 

[Bruxa de Schleswig]

Por outro lado, pensem no preço pago por aquelas mulheres presentes no assim chamado domínio público da assim chamada política de representatividade. Guardadas as suas muitas diferenças, pensem em Angela Merkel, Hilary Clinton, Dilma Rousseff, e até mesmo Margaret Thatcher. E nos selos de gênero implicadas em suas manifestações públicas naquele espaço de poder que é eminentemente e por excelência determinado como masculino pela história da cultura: as marcas hierárquicas das dicotomias conceituais que estruturam um mundo de baixo e um mundo de cima, e no modo como elas parecem mover-se engessadamente, pesadamente, por assim dizer, no lugar errado, com o peso das estampas impressas em seus corpos, vozes, comportamentos, e inúmeras decapitações sofridas a la Medusa.

 

[Eye Magined – Trump/Clinton 2016.]

O preço dessa subversão e dessa resistência é um insulamento achincalhado de suas imagens que se desdobram daquela conceituação dicotômica aqui denunciada. Neste sentido, não basta ocupar o espaço. E o poder aí anuído é fugidio e fugaz, e violento, e violentamente usurpado – novamente, seja no caso das bruxas ou no caso das representantes políticas, parece que tudo volta ao seu “devido lugar” depois de uma rápida licença. Veja-se o nosso caso brasileiro. Porque os poderes mágicos da linguagem seguem intocados, sem rebelião, sublevação ou transtorno definitivo. 

Aí reside minha proposta. No motim. 

 [Sagrada Resistência – Marco Melgrati]


A partir de uma mirada feminista à linguagem como a morada do poder e da política. Eu afirmei que a linguagem cria, molda e estampa a realidade e o mundo, os nossos corpos e as nossas mentes, nossas imagens e imaginações. E que nada aí, nas palavras que nos atravessam de ponta a ponta, é inocente ou sem consequências. Nem isento de responsabilidade, compromisso e comprometimento. Mas eu igualmente afirmei, e reitero agora, que a linguagem também modifica a realidade. E que se há um compromisso feminista a ser firmado epistemológica e politicamente em vista de um mundo sem amarras conceituais fragmentadas em aprisionamentos, exclusões e mortes por gênero, então este compromisso é a total subversão dos espaços marcados pela concepção enganadora e falsa a respeito da unilateralidade e da unidimensionalidade das palavras e dos campos de significado, dos vastos campos de significado da nossa linguagem, fundados não sobre a genialidade abstrata e transcendente das filosofias metidas à besta em seus ninhos celestes inalcançáveis, mas sobre nossos corpos, sobre nossos corpos vivos e profundamente comprometidos com nossas respostas mútuas e interrelacionais. E é por isso que se trata também de uma questão de responsabilidade. Que a linguagem modifique a realidade e o mundo como resposta à violência do poder que se autoproclama com e por palavras sectárias e interessadas. Neste sentido, não há espaço para isenção e neutralidade. A reprodução das dicotomias, dos pares de opostos que nos separam entre bruxas e santas ou entre putas e donzelas, dos pares de opostos cujas alternativas exclusivas são sempre reiteradamente excludentes de alguém, a reprodução das teorias monológicas e monoculturais, ou das posições surdas ao poder da linguagem em se desdobrar como malignidade e crueza sobre corpos vivos, esta reprodução é comprometidamente conivente com a brutalidade e a inumanidade do mundo, e é plenamente responsável pelo extermínio de pessoas, de coisas vivas, de animais não humanos, e plenamente responsável pela erradicação das nossas esperanças.

Proponho um motim pelo fim das conceituações dicotômicas e em prol de uma pluralidade linguística e imagética responsável pelos corpos vivos, os nossos, os das outras e os de todas as outras, humanas e não humanas, nossas companheiras de infortúnio e calamidade linguística. 

E proponho que ‘corpo’ seja o conceito fundante a partir do qual compreender as intersecções entre linguagem e realidade. Um corpo cheio de vida, de poder, de significados e de compartilhamentos que nos permitam a todos e a todas o reconhecimento, ao mesmo tempo, de nossa vulnerabilidade e de nosso engajamento de criaturas da Terra. Que não é plana. E que portanto não admite, em nenhuma instância de nossas ações, palavras e imagens, qualquer passassão de pano aos isentões do nosso vocabulário.

 Jamais passarei pano novamente!