Tradução do meu irmão Douglas.
Quando eu tinha cerca de cinco anos, tive um gatinho cinza, chamado Popeye. Eu não tenho ideia do porquê. Tenho algumas fotos com ele, tomando sol no quintal. Eu não sei exatamente por quê nunca o esqueci. Talvez por causa das fotos. Assim como acontece com as fotos da minha bisavó. Eu realmente não lembro da minha bisavó, aquela que falava polonês, português, alemão, italiano (este desejo por línguas será herança sua?), aquela velha imigrante vivendo em meio aos campos de cultivo construídos sobre corpos indígenas brasileiros. Mas também nunca a esqueci e ainda sinto terrivelmente a falta dela. Mesmo que eu tivesse cerca de três anos quando ela faleceu. Parece que ela gostava de gatos, histórias e lenços de cabeça. Aí mais tarde teve um gato amarelo chamado O Gato, esse pobre coitado, envenenado e deixado sozinho para morrer pela mão, e quero dizer literalmente, de um homem que eu detestava profundamente, e talvez, agora penso, porque ele era capaz de fazer isso. Tirá-lo de sua miséria. Como isso poderia ser de algum consolo? O Gato trouxe a necessidade de gatos. Então veio a Cathy, e ela era brava, violenta, uma companheira leal, a quem eu vi, pela primeira vez em minha própria vida, como uma criatura viva cheia de ser, dar o seu último suspiro para entregar sua alma – de volta ao universo, quem sabe. Depois veio a Aninha, a quem eu mesma tive que impedir de continuar respirando, vendo-a entregar-se em minhas próprias mãos, com confiança. Eu a traí. Minha própria chance de acabar com a miséria de alguém. Ela tinha quatorze anos. Mas como isso poderia ser de algum consolo? Seis meses depois, eu me senti traída pela minha avó, mãe da minha mãe, que não pôde esperar que eu e meu irmão chegássemos para nos despedir. Fomos pegos pela morte no meio do caminho.
Veja, eu sou vegana há cerca de quinze anos agora, e minha avó, esta mulher camponesa que tornou-se uma porque outro caminho não havia para ela, embora uma vez urbana e instruída, era agora uma mulher migrante e casada, minha avó foi uma das pessoas mais importantes da minha vida.
Eu a tinha visto com a galinha para morrer, os leitões para morrer, a vaca para ordenhar, as horríveis histórias de caça do marido e do sogro, aquele que perdeu uma perna num tiro de caçada.
E, no entanto, como eu poderia virar meu rosto para aquela pipoca afetuosa que ela tinha feito para nós naquela tarde, estourada com banha, quando fui me despedir antes de minha partida para longe? Eu nem tinha certeza se algum dia seria capaz de vê-la novamente.
Eu sinto muita falta dela. E embora eu tenha ficado profundamente magoada por ela ter se calado sobre os habitantes indígenas da mesma terra do meu nascimento, dos quais ainda sou profundamente ignorante, ainda estou realizando coisas e lidando com minha própria vida em uma tentativa desesperada de fazer justiça para ela e para minha mãe, que seriam as melhores lutadoras vegetarianas feministas, as melhores das ouvintes feministas. Se algum dia elas tivessem tido a chance de superar a sobrevivência, a opressão capitalista agrícola, o monoculturalismo esverdeado, a dominação masculina e patriarcal, a baixa escolaridade, o destino estrutural, não planejado. Compreender a realidade, ouvir vozes de animais não humanos. Ouvir vozes de mulheres animais. Mas como isso pode ser de algum consolo?
Tudo isso dói o quanto dói. E não tem nada a ver com meus gatos mortos terem sido seres sencientes, mesmo que seus sofrimentos e bem-estar significassem muito para mim enquanto eles estavam lá, nem com minha avó ter sido um ser racional, inteligente e com interesses próprios - mesmo que as injustiças com as quais ela teve que lidar ao longo de toda a sua vida tenham ferido o coração de sua alma.
Mas tem a ver com almas. Suas almas únicas e insubstituíveis, e os significados que suas almas ofereceram para que a vida tivesse um significado, e os significados que suas almas ofereceram às vidas de todos os seres que os cercaram enquanto estiveram lá, e depois que partiram - porque nós nos lembramos deles mesmo quando não nos lembramos.
Tem a ver com a vida que construímos em conexão - animais humanos e não humanos, humanos e corpos, corpos cheios de ser. Poderíamos muito bem estar falando sobre borboletas, não é mesmo?
Agora meu padrinho está morrendo. Ele teve uma vida cheia de amor - e miséria. Ele perdeu os dedos direitos enquanto trabalhava numa fábrica de sapatos. Uma fábrica de calçados capitalista e monopolista. Ele então se aposentou e encontrou algum conforto no amor de seus netos.
Mas ele agora está vulneravelmente doente. Eu olho para seu rosto seco, suas pernas magras e sua mão nunca reparada, e não posso culpá-lo por ter sido ganancioso por álcool e carne. Posso?
Ele e meu pai faziam todo o trabalho doméstico que minha avó não fazia enquanto trabalhava no campo. Os dois eram meninos autônomos, crescidos para tornarem-se homens autônomos. Ambos estão enfrentando a idade agora e a solidão e a distância da pandemia.
Mas o que diabos isso tem a ver com
animais em qualquer sentido?
Vulnerabilidade, eu acho, pode ser uma resposta possível. E cuidado. E ser
gentil com as criaturas vivas. Tem a ver com almas. Suas almas únicas e
insubstituíveis, e os significados que suas almas oferecem para que a vida
tenha um significado, e os significados que suas almas oferecem para a vida de
todos os seres que os cercam enquanto estão aqui.
Tem a ver com a vida que construímos em conexão - animais humanos e não humanos, humanos e corpos, corpos cheios de vida. Homens e mulheres, e seres sem gênero. E nenhuma normatividade social hierárquica. Poderíamos estar falando sobre pássaros e répteis, e bebês, não é mesmo?
E tem a ver também com a necessidade não negociável de um mundo seguro para os trabalhadores não perderem a vida pelo dinheiro que nunca ganham para si; seguro para as mulheres escolherem seus caminhos em seus corações humanos; seguro para os gatos serem amados e lembrados, não como meros animais de estimação, mas como almas únicas e insubstituíveis. Como almas, cheias de ser.
Eu sei.
Como posso ousar narrar gatos, avós e padrinhos no mesmo pedaço de sentimento? E gatos e porcos, vacas, borboletas, pássaros, répteis e bebês? Como ouso?
Bem, veja, tem tudo a ver com a vida de significado que construímos em conexão - ou, como a vulnerabilidade deixa claro, em todas as ocasiões, tem a ver com nossas falhas em oferecer justiça. Mas justiça como amor e generosidade corporificada, não como lei, norma ou julgamento. Nossas falhas em respondê-los como habitantes compartilhadores do mundo em que vivemos. Justiça como possibilidade de ver “o outro” em sua realidade mais plena e profunda. Justiça como atitude para com uma alma.
Então, não há outra pergunta aqui além desta: somos capazes de fazer isso?
De salvar a nós mesmos e aos valores humanos e não humanos em vista de uma sobrevivência digna na Terra? Podemos nos salvar diante de nossas ações de violência e injustiça?
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