quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Linguagem, imagens e poder: uma mirada feminista


 A linguagem é a morada do poder.

Eu tenho insistido repetidamente, de modo enfático e às vezes enfadonho, nos poderes mágicos da linguagem para criar, moldar, estampar e modificar a realidade e o mundo. Nos seus poderes mágicos para marcar, em nossas mentes e em nossos corpos, as imagens persistentes dos nossos fundos imaginários abissais e dos nossos cenários cotidianos de vivência incontáveis vezes violenta de generificação, exclusão e aprisionamento. Eu tenho insistido nas inflexões de poder mais ou menos camufladas nas entranhas das palavras. E nos reflexos imagéticos que se avolumam em nossa cultura. Nada aí é inocente. Nem isento de responsabilidade, compromisso e comprometimento.   

A linguagem é a morada da política.

A linguagem cria o mundo quando separa em partes hierarquicamente distintas o que dignifica mais e o que dignifica menos e o que vale o valor exato do capital – que é sempre financeiro, diga-se de passagem. Sinceramente, estas distinções fariam mais sentido se a Terra fosse mesmo plana. Porque na esfera em que vivemos, circulamos todos atraídos pela mesma força e pela mesma carga que nos ata a uma superfície vulnerável às nossas próprias ações. E às imagens polarizadas que tornam a nós mesmas vulneráveis. Eu falo, aqui, para lembrar as vozes que há muito tempo se calaram porque sufocadas por suas mãos e seus dedos compridos de homens brancos colonizadores que, por sua vez, sempre falaram também violentamente. E eu falo aqui, portanto, da violência das dicotomias que nos criam como corpos faltantes, como corpos faltantes em humanidade, em cognição e em ação, mas apenas porque também nos criam como imóveis, castas, passivas, ingênuas, pacientes, decorosas, lacrimosas, emotivas, frágeis, suscetíveis, sugestionáveis, influenciáveis, fofoqueiras, bisbilhoteiras, faladeiras, desmedidamente curiosas quando a curiosidade pode ser uma virtude, quando, vejam bem, ‘comadre’ é um sinônimo para ‘maledicente’, e desde aí descontentes, insatisfeitas, ingratas, invejosas, impulsivas, incontidas, sexualmente insaciáveis, corporalmente imoderadas e essencialmente lascivas, devassas, e por isso eu me recuso a ceder a uma bebida sexista, racista e coniventemente objetificadora, e desde aí, vejam, vingativas, obcecadas, perturbadas, histéricas, loucas, doentias, indisciplinadas, descontroladas, rebeldes, selvagens, bruxas, politicamente incapazes, socialmente subversivas. Ora, como permitir qualquer espaço de poder a seres que beiram tamanha animalidade? Tamanha inumanidade? Como permitir qualquer acepção de legitimidade às suas palavras? Não me parece à toa que nossas palavras passem ora por esturros incompreensíveis ora por silêncios presos na garganta. Mas como a nós não podem tornar pedras e como no fundo precisam dos nossos úteros para a perpetuação do patriarcado classista e racializado, trata-se então de criar uma linguagem que fale por sobre nossas vozes e que masculinize aqueles conceitos que autorizam e fundamentam a genuinidade do poder. E a genuinidade das palavras. E da política.

Pensem nas oposições adjetivas a tudo isso que nos feminiza tal como pretende o Malleus Malleficarum, mas também Rousseau, Kant, e antes ainda Aristóteles, Homero e Francis Bacon, e teremos a figura, outorgada pela linguagem e replicada pelas imagens da nossa cultura, do que é um ‘ser humano’. Além disso, essa figura tem uma localização geográfica muito específica.


Esta é América, selvagemente despida em seu idílio canibalista. Ela seduz, enfeitiça, resiste. É preciso domesticá-la e, se isso não for suficiente, queimá-la junto de outras bestas.

[America. Gravação de  Theodor Galle a partir de um desenho de Jan van der Straet [Stradanus], c. 1575.]

Esta também é América. 

   

[Exaltação a Mãe Preta : o símbolo de uma raça, em pról de uma nacionalidade. (Novo Horizonte, ano VIII, nº61, set/1954).]

E esta também. 
 
 
E também esta. 
 
 
 
Esta, por sua vez, é Ursula Hamdress. Repito: Hamdress. Ela está sedutoramente posta aí para se comer, em todos os sentidos do verbo. Mas notem que isto não passa por canibalismo, apesar de nós todas estarmos ali, como referentes ausentes – nas palavras de Carol Adams.
 
 
 

E eu trago isso aqui para se ver o modo como o corpo é de fato a superfície fundacional sobre a qual se constroem todos os significados da nossa linguagem. E sobre isso também tenho insistido recentemente.

Porque a linguagem molda o mundo sobre a plasticidade dos nossos corpos, que se conformam, que se confinam e que se ajustam à disciplina das palavras que, lembrem-se, são hierarquicamente legitimadas por uma conceituação de fundo, aquela da outorga política do poder. E é assim que ela molda também os nossos corpos e os seus invólucros e as suas entranhas. E é por isso que nossas reações ao corpo vivo, como diria Elisabeth Costello, mostram nossa aderência àqueles valores que nos tornam mais ou menos ‘humanos’ e mais ou menos passíveis de ‘dignidade’. Que a subversão política consista em fazer ver a dignidade da ‘vida’ me soa desalentador e, ao mesmo tempo e por isso mesmo, extremamente conforme à construção moderna da linguagem, à construção moderna da linguagem filosófica, em suas definições bipartites reproduzidas na linguagem beligerante dos direitos, que só podem ser reivindicados em voz alta – portanto, apenas nos estreitos e confinados espaços do poder. Dadas as nossas qualificações, nós na verdade não nos ajustamos a estes espaços. Mulheres, mulheres pretas, mulheres indígenas, as selvagens, as bruxas e seus asseclas, as mulheres e os outros animais não humanos, não cabem e não se ajustam, como meros corpos que são, como meros corpos sem acepções de vida e dignidade tal como estas são franqueadas pela lógica impassível e inabalável de uma Racionalidade com letra maiúscula, não cabem e não se ajustam às configurações modernas, e contemporâneas ainda, dos valores classificáveis, instrumentais, mecânicos, utilitários – sempre não imanentes – do mundo. O que eu quero dizer com tudo isso, em última instância, é que nossos corpos são moldados de tal forma pela linguagem, que ‘corpo’ e ‘vida’ são moldes conceituais que servem aos catálogos do poder, e que eles coincidem apenas quando a ‘vida’ pode ser justificada por aquelas palavras genuínas, branqueadas e masculinizadas, da linguagem.


  [Arrufos. Belmiro de Almeida, 1887.]
 

Deixem-me exemplificar: o conceito de ‘vida’ parece ter cada vez menos aderência conforme os corpos passam da branquitude à negritude, da heterossexualidade à homossexualidade, da juventude à velhice, da aparência de riqueza à pobreza; conforme os comportamentos sejam mais espontâneos, mais próximos de uma vivência afetiva, não uniformemente regrada, e que acompanha a alegria gratuita da animalidade, por exemplo; ou conforme uma mulher vá despindo suas camadas de roupa, de maquiagem, de adereços, da “feminilidade” à “vulgaridade”, da domesticidade à prostituição, da urbanidade ao campesinato, da beleza à feiura, do encoberto à nudez. Não fosse assim, a violência não se assentaria com todo o seu peso hierarquicamente, e estruturalmente, sobre os corpos que se confundem com as nomenclaturas da natureza, que é duplamente rebaixada ao servir de pejorativo para a desqualificação humana, em mais um dos seus desdobramentos dicotômicos. Piranhas, cadelas, cachorras, porcas, vacas, galinhas, jumentas. Também elas, as outras fêmeas da Terra, tem parca ‘vida’ sobre seus corpos dispensáveis, matáveis, comíveis. E a nossa cultura do estupro, mas também a nossa cultura carnivorista, pecuarista e extensivista, – lembrem-se agora de Ursula Hamdress – molda as mais banais das nossas ações cotidianas sobre os protótipos dos meros corpos ou dos corpos vivos, estampando sobre eles o selo da sua valência, e do seu merecimento.

É neste sentido que o molde e a estampa da linguagem sobre a realidade se completam: a marca, impressão ou etiqueta incorporada pela criatura, sobre sua pele de bicho ou de gente, ou de mero corpo, como também sobre a expressão mesma do seu silêncio ou da reprodução das palavras que, ordenadamente, lhe cabem, define os seus espaços ocupáveis, os seus movimentos nestes espaços, a sua máxima e mínima liberdade, o seu máximo e mínimo poder, as suas fronteiras de humanidade e de animalidade, de publicidade e de privacidade, de manifestação política e de afeto.

Dito de outro modo, a estampa da feminilidade heteronormativa define os nossos modos de vestir, de calçar, de comer, de beber, de expressar, de sentar, de falar, de sentir e de pensar também. Ou sobretudo de sentir e de pensar, já que os moldes da feminilidade heteronormativa informam e enformam nossas corpos e nossas mentes e nos aprisionam aos conceitos inferiorizados da linguagem e às imagens reflexas repetidas ao infinito por nossa própria adesão ou até mesmo por nossa resistência.

E eu estou pensando aqui nas concessões do poder que cobram de volta o seu preço, pela via da linguagem, das imagens ou das soluções de exclusão definitiva, e esta, a exclusão definitiva, seja como fraude, como impeachment ou como assassinato. Pensem na gigantesca assunção de poder à sabedoria das mulheres tornadas ‘bruxas’, exatamente por esse motivo, e nos significados estampados sobre seus corpos e sua linguagem prenhes de vida e de morte, do nascimento e da cura ao aborto. O preço, aqui, para além do ultimato das fogueiras, é a cooptação do seu poder para sua própria “reprivatização”, como diz Mary Beard, ou para sua domesticação juntos aos seus iguais em banalidade como gatos, cachorros, bodes, morcegos e afazeres do “lar”; “qual o significado de sentar no próprio emblema do humilhante trabalho doméstico e sair voando?”, pergunta Stacy Schiff. 

 

[Bruxa de Schleswig]

Por outro lado, pensem no preço pago por aquelas mulheres presentes no assim chamado domínio público da assim chamada política de representatividade. Guardadas as suas muitas diferenças, pensem em Angela Merkel, Hilary Clinton, Dilma Rousseff, e até mesmo Margaret Thatcher. E nos selos de gênero implicadas em suas manifestações públicas naquele espaço de poder que é eminentemente e por excelência determinado como masculino pela história da cultura: as marcas hierárquicas das dicotomias conceituais que estruturam um mundo de baixo e um mundo de cima, e no modo como elas parecem mover-se engessadamente, pesadamente, por assim dizer, no lugar errado, com o peso das estampas impressas em seus corpos, vozes, comportamentos, e inúmeras decapitações sofridas a la Medusa.

 

[Eye Magined – Trump/Clinton 2016.]

O preço dessa subversão e dessa resistência é um insulamento achincalhado de suas imagens que se desdobram daquela conceituação dicotômica aqui denunciada. Neste sentido, não basta ocupar o espaço. E o poder aí anuído é fugidio e fugaz, e violento, e violentamente usurpado – novamente, seja no caso das bruxas ou no caso das representantes políticas, parece que tudo volta ao seu “devido lugar” depois de uma rápida licença. Veja-se o nosso caso brasileiro. Porque os poderes mágicos da linguagem seguem intocados, sem rebelião, sublevação ou transtorno definitivo. 

Aí reside minha proposta. No motim. 

 [Sagrada Resistência – Marco Melgrati]


A partir de uma mirada feminista à linguagem como a morada do poder e da política. Eu afirmei que a linguagem cria, molda e estampa a realidade e o mundo, os nossos corpos e as nossas mentes, nossas imagens e imaginações. E que nada aí, nas palavras que nos atravessam de ponta a ponta, é inocente ou sem consequências. Nem isento de responsabilidade, compromisso e comprometimento. Mas eu igualmente afirmei, e reitero agora, que a linguagem também modifica a realidade. E que se há um compromisso feminista a ser firmado epistemológica e politicamente em vista de um mundo sem amarras conceituais fragmentadas em aprisionamentos, exclusões e mortes por gênero, então este compromisso é a total subversão dos espaços marcados pela concepção enganadora e falsa a respeito da unilateralidade e da unidimensionalidade das palavras e dos campos de significado, dos vastos campos de significado da nossa linguagem, fundados não sobre a genialidade abstrata e transcendente das filosofias metidas à besta em seus ninhos celestes inalcançáveis, mas sobre nossos corpos, sobre nossos corpos vivos e profundamente comprometidos com nossas respostas mútuas e interrelacionais. E é por isso que se trata também de uma questão de responsabilidade. Que a linguagem modifique a realidade e o mundo como resposta à violência do poder que se autoproclama com e por palavras sectárias e interessadas. Neste sentido, não há espaço para isenção e neutralidade. A reprodução das dicotomias, dos pares de opostos que nos separam entre bruxas e santas ou entre putas e donzelas, dos pares de opostos cujas alternativas exclusivas são sempre reiteradamente excludentes de alguém, a reprodução das teorias monológicas e monoculturais, ou das posições surdas ao poder da linguagem em se desdobrar como malignidade e crueza sobre corpos vivos, esta reprodução é comprometidamente conivente com a brutalidade e a inumanidade do mundo, e é plenamente responsável pelo extermínio de pessoas, de coisas vivas, de animais não humanos, e plenamente responsável pela erradicação das nossas esperanças.

Proponho um motim pelo fim das conceituações dicotômicas e em prol de uma pluralidade linguística e imagética responsável pelos corpos vivos, os nossos, os das outras e os de todas as outras, humanas e não humanas, nossas companheiras de infortúnio e calamidade linguística. 

E proponho que ‘corpo’ seja o conceito fundante a partir do qual compreender as intersecções entre linguagem e realidade. Um corpo cheio de vida, de poder, de significados e de compartilhamentos que nos permitam a todos e a todas o reconhecimento, ao mesmo tempo, de nossa vulnerabilidade e de nosso engajamento de criaturas da Terra. Que não é plana. E que portanto não admite, em nenhuma instância de nossas ações, palavras e imagens, qualquer passassão de pano aos isentões do nosso vocabulário.

 Jamais passarei pano novamente!



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