segunda-feira, 30 de julho de 2018

Contra a República de Gilead

The Handmaid's Tale - Hulu Productions


Qual é o tempo de uma distopia? Quanto tempo leva para chegarmos ao futuro? Quantos anos nos restam para a instauração de um patriarcado teocrático totalitário? Quanto tempo temos ainda para o usufruto de nossa liberdade republicana e democrática? E quanto tempo leva para tudo perdermos? A república, a democracia, a liberdade, e até mesmo o futuro. De quanta ilusão é feita uma distopia, para que ela seja o nosso pior pesadelo? Ilusão o bastante, talvez, para as saídas utópicas pelas portas dos fundos. Mas não ilusão o suficiente. Porque a irrealidade das utopias é brutalmente contraposta à facticidade de nossos atos imaginativos, literários e políticos distópicos. E qualquer insurreição contra a República de Gilead é uma insurreição contra o passado presente nas distopias.
Porque, afinal, onde é Gilead? Gilead é o coração de cada uma de nós. É nosso corpo e nossa entranha e nosso desejo. Gilead sou eu e a coisa pública que é feita de mim, ou das partes que em mim interessam à fraternidade humana. Gilead é o meu medo político. É o nosso medo de estupro, de abandono, de confinamento, de iletramento, de domesticação. É o nosso medo de Deus. De sua onipresença filosófico-histórica como justificativa para a justiça feita em Seu nome. É o nosso medo da justiça. E de seus correlatos Iluministas. E o nosso medo dos nomes que as coisas têm nas mãos dos homens de Deus, assim como nas mãos dos homens de bem, dos justos, e até mesmo dos revolucionários. Abençoados são os fracos, porque são eles que os servem. Abençoados são os iletrados, porque são eles que os obedecem. Gilead é a nossa conformidade às bênçãos da conceituação filosófica. Gilead é o poder das palavras de criar um mundo. É o nosso assentimento e a nossa anuência à continuidade desta fraternidade conspiratória em nome da liberdade – em nome de Deus, em nome da justiça. De sua liberdade, claro. De sua cidadania. De sua igualdade. Uma igualdade constituída de branquitude e virilidade. É claro. Enquanto nós nos conformamos aos ideais de sua República, abençoadamente para eles. A coisa pública, aqui, somos nós. Gilead é a nossa esquina filosófica conceitual, o nosso mundo das Luzes imperativas, das iluminações masculinizantes. E qualquer insurreição contra a República de Gilead é uma insurreição contra o passado presente nesta distopia. Afinal, quanto tempo leva para chegarmos ao futuro, quando o futuro nos trouxe até aqui?
Ou não deveríamos ver nas incursões pedagógicas do Centro Vermelho ordenado e vigiado pelas Tias as sombras do disciplinamento regularmente instrumentalizado e da docilização dos corpos diferentemente afeminados tantas vezes levados a cabo pela caça às bruxas, pela patologização do feminino, pela expropriação da sua fala e do seu nome, por meio do medo, da punição, do esvaziamento epistêmico, do silenciamento multifacetado, do insulamento à reprodução humana. Com a aquiescência e o exercício do próprio poder feminino, muitas vezes, no entanto. Mas se as Tias são tão difíceis de aceitar, como o são todas as autodenominadas “anti-feministas”, não é muito melhor para nenhuma delas aqui. Tias, Esposas, Marthas ou Aias, todas são servas dos seus senhores. Nenhuma delas é de fato cidadã desta República, porque nenhuma delas detém de fato o poder sobre o próprio corpo. Afinal, é isso a cidadania, não é mesmo? É para isso que ela serve, para que sejam todos protegidos em seus corpos e em suas mentes e em seus saberes de acordo com os princípios da igualdade e da liberdade. É para isso que serve o contrato que institui peremptoriamente da Modernidade em diante e ao infinito a ideia do consentimento e do consenso político de todos para com todos mutuamente, igualitariamente, fraternalmente. É para isso que serve o pacto de coesão social, para o gozo da liberdade sem o medo da morte aleatória, do encarceramento arbitrário, da violência física injustificada. É isso a cidadania, não é mesmo? Concebida em vista de um mundo melhor, menos paternalista, menos autoritário, menos aristocrático e hierárquico, mais imparcial, mais equânime, universalmente justo e desinteressadamente concorde. Mas melhor nunca significa melhor para todo mundo. Sempre significa pior, para alguns. Sempre significa pior para nós. Porque nenhuma de nós é de fato cidadã desta República dos Contratos. Nós nunca assinamos nada, nunca concordamos com seus termos, nunca pensamos os seus direitos, nunca elaboramos os seus conceitos. Nós não somos contratantes, porque não somos indivíduos legitimamente investidos da posse da propriedade em nossa pessoa, não somos indivíduos, na verdade, não somos racionais, razoáveis, autônomas, independentes. Em última instância, nós simplesmente não somos. Ou o somos apenas como posse alheia. E esse é objetivo. É para isso que serve a desculpa perfeita da ficção política dos contratualistas. Para o livre acesso masculino aos corpos femininos – como eles assim o determinarem. Para o casamento, para a prostituição, para a servidão. Exatamente do mesmo modo como o desejam os comandantes sob os Olhos de Deus. As Esposas, as Aias, as Marthas. Parcialmente, no entanto, à meia-humanidade das mulheres é concedida a subscrição de sub-contratos – parciais, de mão única, unilaterais, privados, sempre privados, nunca públicos: de casamento, de prostituição, de servidão. E é assim que se ganha a concordância em relação a sua própria subordinação, assinada de seu próprio punho. É para isso novamente que serve o contrato fraternal moderno. À sombra de um contrato sexual de mútuo respeito quanto à exclusividade da disponibilidade deste corpo feminino – o da esposa, o da prostituta, o da serva. Os irmãos, livres do paternalismo, empenham-se na salvaguarda desta instauração social pública, politica, todo o resto relegado à conversa particular no quarto de dormir, relegado às decisões familiares da família de antemão decidida e de antemão definida de fora para dentro. A salvaguarda da publicização contratual é a salvaguarda do poder masculino no seio do lar, do casamento, e consequentemente do trabalho, sobejando aí a permissibilidade das violências – de várias estirpes e vários matizes – já que a domesticidade não é da conta de ninguém, já que a privacidade é sacralizada – a não ser precisamente por razões de Deus, claro, razões contra-reprodutivas, razões de heteronormatividade. Do contrário, o desfrute exclusivo outorgado pela unilateralidade do contrato é incumbência e prerrogativa única e definitivamente masculina – sendo desse modo ajuizado o que conta ou não como violência e o que conta ou não como liberdade. De que maneira pode, então, o nosso corpo pertencer a nós mesmas? De que modo pode, então, o contrato social amplamente propagado pela positividade de sua universalidade sustentar sempre ainda sua legitimidade ético-política se escamoteia sua história e seu regime sexual sob uma abençoada conceituação igualitarista? Quando foi, desde então – desde a convivência dos contratantes com as necessidades capitais da reprodução de mão-de-obra e, ao mesmo contraditoriamente, a sua rendição aos valores da bendição divina a serviço, bem a calhar, da dominação masculina – quando foi que nosso corpo foi nosso? Os bolsões da descriminalização do aborto – sempre ainda e de novo resistidos, combatidos e condizentemente amaldiçoados em nome da vida e dos homens de bem – apenas certificam nossa a-cidadania. Nenhuma de nós é de fato cidadã desta República dos Contratos. Nenhuma de nós, em última instância, pertence a si mesma.
O que nos separa de Offred, Ofglen, Ofwaren, mas também de Serena Joy e das Marthas, hoje, é um breve intervalo de “liberdade para” – com todos os riscos aí implicados, com todas as contradições aí envolvidas e proporcionadas pela emancipação feminina e pela necessidade de emanciparmo-nos também dela, com todas as variadas aparências da liberdade do empoderamento liberal coadjuvante das demandas capitalistas, com todas as licenças contra-heterossexuais possíveis, que muito embora continuem nos matando ainda não levam ou não levam mais, aqui e agora, à sumária e exemplar execução pública atribuída aos “traidores de gênero”, com todas as exceções de permanente violência, e sabemos todas nós dos seus números, estatísticas e histórias, todos os dias – um breve intervalo de “liberdade para” sem que estejamos de fato livres do medo, do silenciamento, da inferiorização e do sexismo explícito sempre latente, sempre pronto para explodir em conservadorismo pseudo-religioso, militarizado e bravio; pseudo-virtuoso, é claro. Embora não sejamos sistematicamente estupradas – para fins de reprodução – e muito embora aparentemente façamos parte do universo do contrato formalmente estabelecido pela fraternidade humana com o sobreaviso e contra o pano de fundo de uma política sexual racializada, o que nos separa da distopia da servidão feminina não é a ausência de um patriarcado, de uma teocracia, de um totalitarismo, nem é a ausência da concordância e da participação e da subordinação das mulheres aos seus ideais – já que encontramos mais Tias Lydias do que de fato desejaríamos – mas é um lapso entre uma história filosófica, política e epistêmica de exclusão e de eliminação e o risco sempre eminente de um futuro que apenas a reproduz sob nova roupagem. É um lapso de tempo, um lapso de “liberdade para”, um lapso de ilusão. O que nos separa da distopia da servidão feminina não é a ausência da servidão feminina, mas tão somente uma suspensão temporal entre um contrato e a fragilidade de nossa liberdade.
Será realmente possível não ser desoladoramente pessimista ante a percepção dos reflexos recíprocos entre a distopia de Atwood e a denúncia político-filosófica de Pateman?
Sim, creio que sim.
Mas apenas, lamento dizê-lo, se qualquer insurreição contra a República de Gilead for também uma insurreição contra nosso passado presente nesta distopia, contra o contrato liberal, teológico-político, filosófica e epistemicamente monológico e coniventemente capitalista.
Porque o melhor tem que ser melhor pra todo mundo, e não podemos deixar que os bastardos nos esmaguem – de novo.

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