The Handmaid's Tale - Hulu Productions |
Qual
é o tempo de uma distopia? Quanto tempo leva para chegarmos ao futuro? Quantos
anos nos restam para a instauração de um patriarcado teocrático totalitário?
Quanto tempo temos ainda para o usufruto de nossa liberdade republicana e
democrática? E quanto tempo leva para tudo perdermos? A república, a
democracia, a liberdade, e até mesmo o futuro. De quanta ilusão é feita uma
distopia, para que ela seja o nosso pior pesadelo? Ilusão o bastante, talvez,
para as saídas utópicas pelas portas dos fundos. Mas não ilusão o suficiente.
Porque a irrealidade das utopias é brutalmente contraposta à facticidade de
nossos atos imaginativos, literários e políticos distópicos. E qualquer
insurreição contra a República de Gilead é uma insurreição contra o passado
presente nas distopias.
Porque,
afinal, onde é Gilead? Gilead é o coração de cada uma de nós. É nosso corpo e
nossa entranha e nosso desejo. Gilead sou eu e a coisa pública que é feita de
mim, ou das partes que em mim interessam à fraternidade humana. Gilead é o meu
medo político. É o nosso medo de estupro, de abandono, de confinamento, de
iletramento, de domesticação. É o nosso medo de Deus. De sua onipresença
filosófico-histórica como justificativa para a justiça feita em Seu nome. É o
nosso medo da justiça. E de seus correlatos Iluministas. E o nosso medo dos
nomes que as coisas têm nas mãos dos homens de Deus, assim como nas mãos dos
homens de bem, dos justos, e até mesmo dos revolucionários. Abençoados são os
fracos, porque são eles que os servem. Abençoados são os iletrados, porque são
eles que os obedecem. Gilead é a nossa conformidade às bênçãos da conceituação
filosófica. Gilead é o poder das palavras de criar um mundo. É o nosso
assentimento e a nossa anuência à continuidade desta fraternidade conspiratória
em nome da liberdade – em nome de Deus, em nome da justiça. De sua liberdade,
claro. De sua cidadania. De sua igualdade. Uma igualdade constituída de
branquitude e virilidade. É claro. Enquanto nós nos conformamos aos ideais de
sua República, abençoadamente para eles.
A coisa pública, aqui, somos nós. Gilead é a nossa esquina filosófica
conceitual, o nosso mundo das Luzes imperativas, das iluminações
masculinizantes. E qualquer insurreição contra a República de Gilead é uma
insurreição contra o passado presente nesta
distopia. Afinal, quanto tempo leva para chegarmos ao futuro, quando o futuro
nos trouxe até aqui?
Ou
não deveríamos ver nas incursões pedagógicas do Centro Vermelho ordenado e
vigiado pelas Tias as sombras do disciplinamento regularmente instrumentalizado
e da docilização dos corpos diferentemente afeminados tantas vezes levados a
cabo pela caça às bruxas, pela patologização do feminino, pela expropriação da
sua fala e do seu nome, por meio do medo, da punição, do esvaziamento
epistêmico, do silenciamento multifacetado, do insulamento à reprodução humana.
Com a aquiescência e o exercício do próprio poder feminino, muitas vezes, no
entanto. Mas se as Tias são tão difíceis de aceitar, como o são todas as
autodenominadas “anti-feministas”, não é muito melhor para nenhuma delas aqui.
Tias, Esposas, Marthas ou Aias, todas são servas dos seus senhores. Nenhuma
delas é de fato cidadã desta República, porque nenhuma delas detém de fato o
poder sobre o próprio corpo. Afinal, é isso a cidadania, não é mesmo? É para
isso que ela serve, para que sejam todos protegidos em seus corpos e em suas
mentes e em seus saberes de acordo com os princípios da igualdade e da
liberdade. É para isso que serve o contrato que institui peremptoriamente da
Modernidade em diante e ao infinito a ideia do consentimento e do consenso
político de todos para com todos mutuamente, igualitariamente, fraternalmente.
É para isso que serve o pacto de coesão social, para o gozo da liberdade sem o
medo da morte aleatória, do encarceramento arbitrário, da violência física
injustificada. É isso a cidadania, não é mesmo? Concebida em vista de um mundo
melhor, menos paternalista, menos autoritário, menos aristocrático e
hierárquico, mais imparcial, mais equânime, universalmente justo e
desinteressadamente concorde. Mas melhor nunca significa melhor para todo
mundo. Sempre significa pior, para alguns. Sempre significa pior para nós.
Porque nenhuma de nós é de fato cidadã desta República dos Contratos. Nós nunca
assinamos nada, nunca concordamos com seus termos, nunca pensamos os seus
direitos, nunca elaboramos os seus conceitos. Nós não somos contratantes,
porque não somos indivíduos legitimamente investidos da posse da propriedade em
nossa pessoa, não somos indivíduos, na verdade, não somos racionais, razoáveis,
autônomas, independentes. Em última instância, nós simplesmente não somos. Ou o somos apenas como posse
alheia. E esse é objetivo. É para isso que serve a desculpa perfeita da ficção
política dos contratualistas. Para o livre acesso masculino aos corpos femininos
– como eles assim o determinarem. Para o casamento, para a prostituição, para a
servidão. Exatamente do mesmo modo como o desejam os comandantes sob os Olhos
de Deus. As Esposas, as Aias, as Marthas. Parcialmente, no entanto, à
meia-humanidade das mulheres é concedida a subscrição de sub-contratos –
parciais, de mão única, unilaterais, privados, sempre privados, nunca públicos:
de casamento, de prostituição, de servidão. E é assim que se ganha a
concordância em relação a sua própria subordinação, assinada de seu próprio
punho. É para isso novamente que serve o contrato fraternal moderno. À sombra
de um contrato sexual de mútuo respeito quanto à exclusividade da
disponibilidade deste corpo feminino
– o da esposa, o da prostituta, o da serva. Os irmãos, livres do paternalismo,
empenham-se na salvaguarda desta instauração social pública, politica, todo o
resto relegado à conversa particular no quarto de dormir, relegado às decisões
familiares da família de antemão decidida e de antemão definida de fora para dentro.
A salvaguarda da publicização contratual é a salvaguarda do poder masculino no
seio do lar, do casamento, e consequentemente do trabalho, sobejando aí a
permissibilidade das violências – de várias estirpes e vários matizes – já que
a domesticidade não é da conta de ninguém, já que a privacidade é sacralizada –
a não ser precisamente por razões de Deus, claro, razões contra-reprodutivas,
razões de heteronormatividade. Do contrário, o desfrute exclusivo outorgado
pela unilateralidade do contrato é incumbência e prerrogativa única e
definitivamente masculina – sendo desse modo ajuizado o que conta ou não como
violência e o que conta ou não como liberdade. De que maneira pode, então, o
nosso corpo pertencer a nós mesmas? De que modo pode, então, o contrato social
amplamente propagado pela positividade de sua universalidade sustentar sempre
ainda sua legitimidade ético-política se escamoteia sua história e seu regime
sexual sob uma abençoada conceituação igualitarista? Quando foi, desde então –
desde a convivência dos contratantes com as necessidades capitais da reprodução
de mão-de-obra e, ao mesmo contraditoriamente, a sua rendição aos valores da
bendição divina a serviço, bem a calhar, da dominação masculina – quando foi
que nosso corpo foi nosso? Os bolsões da descriminalização do aborto – sempre
ainda e de novo resistidos, combatidos e condizentemente amaldiçoados em nome
da vida e dos homens de bem – apenas certificam nossa a-cidadania. Nenhuma de
nós é de fato cidadã desta República dos Contratos. Nenhuma de nós, em última
instância, pertence a si mesma.
O
que nos separa de Offred, Ofglen, Ofwaren, mas também de Serena Joy e das
Marthas, hoje, é um breve intervalo de “liberdade para” – com todos os riscos
aí implicados, com todas as contradições aí envolvidas e proporcionadas pela
emancipação feminina e pela necessidade de emanciparmo-nos também dela, com
todas as variadas aparências da liberdade do empoderamento liberal coadjuvante
das demandas capitalistas, com todas as licenças contra-heterossexuais possíveis,
que muito embora continuem nos matando ainda não levam ou não levam mais, aqui
e agora, à sumária e exemplar execução pública atribuída aos “traidores de
gênero”, com todas as exceções de permanente violência, e sabemos todas nós dos
seus números, estatísticas e histórias, todos os dias – um breve intervalo de
“liberdade para” sem que estejamos de fato livres do medo, do silenciamento, da
inferiorização e do sexismo explícito sempre latente, sempre pronto para
explodir em conservadorismo pseudo-religioso, militarizado e bravio;
pseudo-virtuoso, é claro. Embora não sejamos sistematicamente estupradas – para
fins de reprodução – e muito embora aparentemente façamos parte do universo do
contrato formalmente estabelecido pela fraternidade humana com o sobreaviso e
contra o pano de fundo de uma política sexual racializada, o que nos separa da
distopia da servidão feminina não é a ausência de um patriarcado, de uma
teocracia, de um totalitarismo, nem é a ausência da concordância e da
participação e da subordinação das mulheres aos seus ideais – já que
encontramos mais Tias Lydias do que de fato desejaríamos – mas é um lapso entre
uma história filosófica, política e epistêmica de exclusão e de eliminação e o
risco sempre eminente de um futuro que apenas a reproduz sob nova roupagem. É
um lapso de tempo, um lapso de “liberdade para”, um lapso de ilusão. O que nos
separa da distopia da servidão feminina não é a ausência da servidão feminina,
mas tão somente uma suspensão temporal entre um contrato e a fragilidade de
nossa liberdade.
Será
realmente possível não ser desoladoramente pessimista ante a percepção dos
reflexos recíprocos entre a distopia de Atwood e a denúncia político-filosófica
de Pateman?
Sim,
creio que sim.
Mas
apenas, lamento dizê-lo, se qualquer insurreição contra a República de Gilead
for também uma insurreição contra nosso passado presente nesta distopia, contra
o contrato liberal, teológico-político, filosófica e epistemicamente monológico
e coniventemente capitalista.
Porque
o melhor tem que ser melhor pra todo mundo, e não podemos deixar que os
bastardos nos esmaguem – de novo.
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