sexta-feira, 13 de abril de 2018

Presidenta


Até meados de 2010, eu dividia minha morada canadense com uma companheira búlgara. Yanitsa Dimitrova. De repente, como brasileira, eu tinha um pedacinho do leste europeu no meu coração. Rousseff não é Silva. Mas a gente vive confundindo a Dilma com a Vilma agricultora ali de São Pedro de Alcântara. Poderia ter sido, não é mesmo? No entanto, uma operária ou uma roceira não chega a presidenta como um homem. Um homem é um homem, afinal. Uma Dilma, uma Vilma, uma Yana, uma Acilla, uma Rose, todas têm que passar das saias às calças se quiserem murmurar algumas ideias, alguns planos de governo, algumas denominações de gênero, algumas intenções de ação. Ainda que estas sejam ações conciliatórias, engessadas, cedidas e amarradas. Nunca é tudo o que se desejaria. Ou como se o desejaria. Fossem elas os homens, ninguém duvidaria. O assentimento não passa pelo crivo ou pela desconfiança do nome quando a certeza é a neutralidade masculina.
Teria sua afirmação generificada incidido sobre sua exclusão, sobre seu ostracismo político, entremeio à dominação engravatada, togada, cinzenta, pseudo-cristianizada? Teria uma autoafirmação generificada configurado a gota d’água de uma derrocada anunciada desde logo por seu nome, por sua alteridade, por sua praticidade antipática, por sua autenticidade marginal, a-feminina, a-pática, a-típica? Teria um “a” levado tudo à bancarrota? Ou trata-se apenas do “a” o mais oportuno da história parcialmente contada desse país aos seus espectadores boquiabertos, eles mesmos já a-pátridas desde o seu nome? Pre-si-den-ta. A-pá-tri-da. Ou a-mátrida? Somos filhos de quem, afinal? Da nossa mãe-preta, Lélia? Ou da nossa invisibilidade indígena, indigente?
Na terra de meu nascimento, não havia índios. Sempre o soube, que a branquitude de minha ancestralidade desbravou a floresta inútil e desabitada do oeste bravio – corruptela caipira da cinematografia épica estadunidense – para aí instalar sua corajosa pobreza e à-mercê para o privilégio de sua colonização esgarçada e faminta. Mas o bugre estava lá. Eu ouvia seu nome e sentido e andarilhar pejorativo. Não havia índios, havia bugres. Isso me disseram. Isso lhes tomaram: sua terra, sua floresta, suas reservas sobreviventes, seus saberes, sua especificidade, seus nomes, para instar-lhes a eles como ladrões, como alheios, estranhos, estrangeiros, bugres, búlgaros, hereges. A sua diversidade foi desde cedo nomeada, usurpada, por aqueles caçadores de um tipo invasor, incômodo, incoloniável, inconciliável com a brancura assente, fixa, rígida, senhorial, imparcial em sua injustiça, masculina em seu machado, serrote e arma.
Até inícios do século passado, os bugreiros fizeram milhares de mortos, a contar por alto, nos bucólicos cantos de nossa germanidade catarinense. Desde o Medievo, os bugreiros e inquisidores fizeram inumeráveis mortos em nossa Europa colonizadora. Os bugreiros, os inquisidores e os cristãos. Tudo em nome de Deus, da família e da pátria. Ora, os nossos bugres são os búlgaros da cristandade europeia. Os nossos bugres são a anomalia da hegemonia brasileira. Os nossos bugres são também os nossos búlgaros. Os nossos búlgaros são também as nossas mulheres – também os nossos negros, as nossas negras, as nossas agricultoras, as nossas trabalhadoras, a nossa presidenta e Marielle Franco. Os caçadores de bugres não existem mais com nome e profissão, apesar da exclusão territorial, epistêmica e cidadã. Os inquisidores de búlgaros não existem mais com excomunhão e fogueira, apesar das novas cercas, dos novos muros e aduanas ou dos seus naufrágios jamais resgatados. Os hereges de hoje vêm de um outro leste. Os caçadores de bugres, de búlgaros, de índios com seus nomes particulares, de bestas com suas associações demoníacas, de mulheres avessamente possuídas, de seres intercambiavelmente descartáveis, homens pretos, homens nus, de bichos que habitam demais e de mulheres com poder demais. Os bugreiros de outrora foram içados do tempo para a caça capitalista – ainda a mesma, mas agora com roupa de ir à missa, ou ao congresso. Foram içados do tempo obscuro e condenável da caça animalesca à paternidade das imagens, das fotografias por sorte e maldade lançadas ao vento do imaginário ocupado pela misoginia, pela pátria, pela lei, pela voz do homem branco. Foram içados do tempo à alegria de uma vitória feita para fotografar, para sempre, nos autos desta fraternidade que cheira à conspiração, à pacto, à golpe, à exclusão, à ojeriza sobre o feminino, mas também sobre o pouco feminino, sobre o travestido, o diverso, o bugre, o búlgaro, o “a” de todas as nossas autodenominações de gênero.
Em meados de 2016, eu dividia minha morada brasileira com milhões de súbitos apátridas. E era isso o que estávamos perdendo ao perder Dilma. Era isso ao que estávamos simplesmente regressando: a uma caça aos bugres, porque eles definitiva e peremptoriamente quebram o pacto do patriarcado branco homogeneizado; porque eles definitivamente ameaçam o seu Deus dos privilégios exclusivos, a sua casa da família piramidal, rija e infeliz, o seu senso de liberdade seletiva. Por Deus, pela família, pela liberdade, mas de quem? Não dos hereges – em quaisquer dos aspectos de sua heresia.
Em última instância é isso: a democracia, essa figura plural de nossa linguagem política, por incipiente que seja, por abrandada que possa se mostrar, é permissiva demais aos heterogêneos, aos discrepantes, aos discordantes. No fundo, a misoginia do golpe é tentacular, e avança sobre todas nós, e sobre todas as nossas bandeiras em algum sentido feministas, em algum sentido inclusivas, em algum sentido socialistas, para não fazer restar nas cadeiras do poder senão essa imagem, senão esses rostos brancos, senão esses nomes masculinos e esses sorrisos vitoriosos. Essa vitória que se dá à custa de uma Dilma, de uma Vilma, de uma Yana e de todas as Marias Lulas da Silva, aqui, com a fissura final de uma política sexual, racial e classista cujo objetivo derradeiro é aquele do bugreiro, do inquisidor, do colonizador.
Em princípios de 2018, eu divido minha morada brasileira com milhões de selváticos e súditos serviçais e sinto saudades de minha companheira búlgara.

2 comentários:

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  2. Fiquei muito impactada e emocionada ou ouvir Janyne ler suas reflexões, que foram escritas a mão, na mesa "O gênero do Golpe" - Ciclo de debates O Golpe de 2016 e o Futuro da
    Democracia no Brasil (UFSC, 11 abril 2018). Suas palavras nos indicam que necessitamos falar sobre violências contra mulheres (sofridas diuturnamente e muitas vezes de forma silenciosa). Elas valorizam e estimulam toda forma de resistência. Grata por compartilhar. Tânia

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