Até
meados de 2010, eu dividia minha morada canadense com uma companheira búlgara.
Yanitsa Dimitrova. De repente, como brasileira, eu tinha um pedacinho do leste
europeu no meu coração. Rousseff não é Silva. Mas a gente vive confundindo a
Dilma com a Vilma agricultora ali de São Pedro de Alcântara. Poderia ter sido,
não é mesmo? No entanto, uma operária ou uma roceira não chega a presidenta
como um homem. Um homem é um homem, afinal. Uma Dilma, uma Vilma, uma Yana, uma
Acilla, uma Rose, todas têm que passar das saias às calças se quiserem murmurar
algumas ideias, alguns planos de governo, algumas denominações de gênero,
algumas intenções de ação. Ainda que estas sejam ações conciliatórias,
engessadas, cedidas e amarradas. Nunca é tudo o que se desejaria. Ou como se o
desejaria. Fossem elas os homens, ninguém duvidaria. O assentimento não passa
pelo crivo ou pela desconfiança do nome quando a certeza é a neutralidade
masculina.
Teria
sua afirmação generificada incidido sobre sua exclusão, sobre seu ostracismo
político, entremeio à dominação engravatada, togada, cinzenta, pseudo-cristianizada?
Teria uma autoafirmação generificada configurado a gota d’água de uma derrocada
anunciada desde logo por seu nome, por sua alteridade, por sua praticidade
antipática, por sua autenticidade marginal, a-feminina, a-pática, a-típica?
Teria um “a” levado tudo à bancarrota? Ou trata-se apenas do “a” o mais
oportuno da história parcialmente contada desse país aos seus espectadores
boquiabertos, eles mesmos já a-pátridas desde o seu nome? Pre-si-den-ta.
A-pá-tri-da. Ou a-mátrida? Somos filhos de quem, afinal? Da nossa mãe-preta,
Lélia? Ou da nossa invisibilidade indígena, indigente?
Na
terra de meu nascimento, não havia índios. Sempre o soube, que a branquitude de
minha ancestralidade desbravou a floresta inútil e desabitada do oeste bravio –
corruptela caipira da cinematografia épica estadunidense – para aí instalar sua
corajosa pobreza e à-mercê para o privilégio de sua colonização esgarçada e
faminta. Mas o bugre estava lá. Eu ouvia seu nome e sentido e andarilhar
pejorativo. Não havia índios, havia bugres. Isso me disseram. Isso lhes
tomaram: sua terra, sua floresta, suas reservas sobreviventes, seus saberes,
sua especificidade, seus nomes, para instar-lhes a eles como ladrões, como
alheios, estranhos, estrangeiros, bugres, búlgaros, hereges. A sua diversidade
foi desde cedo nomeada, usurpada, por aqueles caçadores de um tipo invasor,
incômodo, incoloniável, inconciliável com a brancura assente, fixa, rígida,
senhorial, imparcial em sua injustiça, masculina em seu machado, serrote e
arma.
Até
inícios do século passado, os bugreiros fizeram milhares de mortos, a contar
por alto, nos bucólicos cantos de nossa germanidade catarinense. Desde o
Medievo, os bugreiros e inquisidores fizeram inumeráveis mortos em nossa Europa
colonizadora. Os bugreiros, os inquisidores e os cristãos. Tudo em nome de
Deus, da família e da pátria. Ora, os nossos bugres são os búlgaros da
cristandade europeia. Os nossos bugres são a anomalia da hegemonia brasileira.
Os nossos bugres são também os nossos búlgaros. Os nossos búlgaros são também
as nossas mulheres – também os nossos negros, as nossas negras, as nossas
agricultoras, as nossas trabalhadoras, a nossa presidenta e Marielle Franco. Os
caçadores de bugres não existem mais com nome e profissão, apesar da exclusão
territorial, epistêmica e cidadã. Os inquisidores de búlgaros não existem mais
com excomunhão e fogueira, apesar das novas cercas, dos novos muros e aduanas
ou dos seus naufrágios jamais resgatados. Os hereges de hoje vêm de um outro
leste. Os caçadores de bugres, de búlgaros, de índios com seus nomes
particulares, de bestas com suas associações demoníacas, de mulheres
avessamente possuídas, de seres intercambiavelmente descartáveis, homens
pretos, homens nus, de bichos que habitam demais e de mulheres com poder demais.
Os bugreiros de outrora foram içados do tempo para a caça capitalista – ainda a
mesma, mas agora com roupa de ir à missa, ou ao congresso. Foram içados do
tempo obscuro e condenável da caça animalesca à paternidade das imagens, das
fotografias por sorte e maldade lançadas ao vento do imaginário ocupado pela
misoginia, pela pátria, pela lei, pela voz do homem branco. Foram içados do
tempo à alegria de uma vitória feita para fotografar, para sempre, nos autos
desta fraternidade que cheira à conspiração, à pacto, à golpe, à exclusão, à
ojeriza sobre o feminino, mas também sobre o pouco feminino, sobre o
travestido, o diverso, o bugre, o búlgaro, o “a” de todas as nossas
autodenominações de gênero.
Em
meados de 2016, eu dividia minha morada brasileira com milhões de súbitos
apátridas. E era isso o que estávamos perdendo ao perder Dilma. Era isso ao que
estávamos simplesmente regressando: a uma caça aos bugres, porque eles
definitiva e peremptoriamente quebram o pacto do patriarcado branco
homogeneizado; porque eles definitivamente ameaçam o seu Deus dos privilégios
exclusivos, a sua casa da família piramidal, rija e infeliz, o seu senso de
liberdade seletiva. Por Deus, pela família, pela liberdade, mas de quem? Não
dos hereges – em quaisquer dos aspectos de sua heresia.
Em
última instância é isso: a democracia, essa figura plural de nossa linguagem
política, por incipiente que seja, por abrandada que possa se mostrar, é
permissiva demais aos heterogêneos, aos discrepantes, aos discordantes. No
fundo, a misoginia do golpe é tentacular, e avança sobre todas nós, e sobre
todas as nossas bandeiras em algum sentido feministas, em algum sentido
inclusivas, em algum sentido socialistas, para não fazer restar nas cadeiras do
poder senão essa imagem, senão esses rostos brancos, senão esses nomes
masculinos e esses sorrisos vitoriosos. Essa vitória que se dá à custa de uma
Dilma, de uma Vilma, de uma Yana e de todas as Marias Lulas da Silva, aqui, com
a fissura final de uma política sexual, racial e classista cujo objetivo
derradeiro é aquele do bugreiro, do inquisidor, do colonizador.
Em
princípios de 2018, eu divido minha morada brasileira com milhões de selváticos
e súditos serviçais e sinto saudades de minha companheira búlgara.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirFiquei muito impactada e emocionada ou ouvir Janyne ler suas reflexões, que foram escritas a mão, na mesa "O gênero do Golpe" - Ciclo de debates O Golpe de 2016 e o Futuro da
ResponderExcluirDemocracia no Brasil (UFSC, 11 abril 2018). Suas palavras nos indicam que necessitamos falar sobre violências contra mulheres (sofridas diuturnamente e muitas vezes de forma silenciosa). Elas valorizam e estimulam toda forma de resistência. Grata por compartilhar. Tânia