terça-feira, 8 de novembro de 2016

A escola

Num primeiro momento, a escola é este espaço intangível entre o gramado aos fundos de casa – o abacateiro milagroso, o rio de um imenso pesadelo – e os degraus escuros que o prédio branco subia com o morro. Num primeiro momento, é ir sozinha à escola, com as calças sujas da geada recém feita, com os pijamas contra o frio que imobilizava as pontas dos nossos dedos, na briga por saber de quem era o maior espanto de inverno. Num primeiro momento, é uma aventura que não tem nome, que se leva pacificamente, atravessando as pontes, os muros, os jardins dos outros, os degraus, e os horrores. Apenas mais tarde serão batizados aqueles atos indelevelmente significativos. De parte a outra, ninguém agora se dá conta. Num primeiro momento, é uma professora. Uma só. Depois, os exemplos paradigmáticos de um tipo qualquer de anti-pedagogia, de anti-emancipação, de anti-exemplificação da primeira pessoa do singular. Depois, é não perder tempo competindo pelo status da maior ingenuidade alcançável; de todo modo, o riso é fácil sobre todo os aspectos de sua pobreza. Neste caso, para tudo, para toda e qualquer circunstância, há os livros e as bibliotecas e as tarefas e as histórias de espelhamento. Depois, também, é o irmão que não se pode jamais – sob pena de um arrependimento que não sabe o seu nome – perder pelo caminho. Quando então o espaço da escola é também à casa; até mesmo ali se reproduz uma biblioteca; e tudo gira em torno de uma série de frases impressas que cumpre aprender para sempre. Como em todos os momentos, também aí se fixa a marca indelével das palavras – e daquelas imagens pontilhadas à guisa de gravuras, e daquelas aulas ministradas a uma assistência de vizinhos, de irmãos, de seres inanimados, de criaturas que têm uma vida de verdade para além de suas feições  iguais, que varam o dia até as histórias inventadas ao adormecer. Uma continuidade de figuras que povoam seus livros de um a outro, escritos inúmeras vezes à exaustão de se sua imaginação, a ponto de se fazerem partes inalienáveis de seu corpo. Aquele espaço intangível é então o espaço de uma grafia. Esta, a sua experiência escolar por excelência.
        Num segundo momento, é uma afronta. Que os livros ainda estão para tudo, para toda e qualquer circunstância, já não constitui um escapismo, mas uma imposição de desordem, de desobediência, de interrupção da mesmice e da pasmaceira generalizada. Uma afronta, o isolamento. Até a menina desigual, a idiota, é sua companhia de enfrentamento. Num segundo momento, é uma guerra. Não há rumo a qualquer tipo de vitória, mas a um certo tipo de sobrevivência. Bater às portas fechadas, aos teatros esvaziados pelo descaso e pela vergonha, às instâncias há muito cansadas da mesma briga, acomodadas agora a um canto de castigo benevolentemente aceito. Que ela não sabe ainda; que ela apenas começa. Não dá pra saber de antemão quanto tempo leva; mas dá para refazer, repetir, sempre, de novo, por cada uma daquelas que se esgota pelo caminho cedo demais. Num segundo momento, a experiência escolar por excelência é a experiência de uma força, de uma diferença, de uma teimosia, que se reconhece, que se transforma, que se quer, enfim, pacífica, mas ainda inquieta. A vontade de um outro tipo de conforto, de um outro tipo de tempo, de pausa, de virtude, de letra, de vida, – os livros ainda aí para tudo, pelo menos também para isso – constitui a sua rebeldia. Num segundo momento, a escola é este espaço muito concreto de descontentamento do mundo, de tangível inconformidade, incredulidade, o seu aborrecimento como um choque à lentidão alheia, à conivência de tantos, à percepção tolhida já à entrada da educação como tempo gasto, puído, dormente, maledicente. Neste instante, a experiência por excelência é aquela de um sonho que só quer sobreviver sonhando, que só faz questão da reminiscência para um respirar de intervalo – entre uma afronta e outra, entre uma e outra palavra de desobediência. Entre uma e outra grafia dissonante.

Um comentário:

  1. Janyne!!
    Linda sua "A escola".
    De um tema tão corriqueiro (vamos dizer assim), você consegue fazer tanta poesia.
    Estou encantada com seu conto/poesia!!
    Não conhecia este seu lado.
    Quem diria... escondida atrás da professora de Filosofia da Educação vive uma grande poetisa!!
    Parabéns Janune! Adorei!!

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