sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Extravio


Perder um dicionário no meio de um tumulto não é nada. Mais do que isso, é já ter esquecido as rimas, uma declamação feita pela metade, como se o silêncio subisse estômago acima. Sequestrando a legitimidade de uma voz. Como se àquelas palavras já não coubesse um pertencimento, fugidias no esvaziamento de seu espectro antes multicolorido. Com que direito, afinal, fazer uso das abertas declarações de sentido? A plenos pulmões, também como um grito de socorro. Urge proceder a um resgate daquelas palavras sequestradas pela univocidade de uma tradição, de uma ideia, de uma ideologia – muitas vezes falseada ou escancaradamente debochada – de um projeto de progresso, de uma estabilidade racional, ou nacional, de um status quo, de um delírio de sabedoria definitiva, de uma universalização. Palavras sequestradas e alijadas de sua existência polissêmica e de seu direito de inocência. Como se já não pudessem servir senão a um propósito de extorsão e paralisia e retrocesso. E ilusão. Com a soberba da certeza como guardiã de sua clausura. Com o efeito de que disso já ninguém mais duvida: apropriações supostamente literais à revelia do mundo, à revelia das próprias palavras e de sua história por recontar. À revelia daqueles que desde então passam à margem do seu único significado possível. O sequestro das palavras criando periferias de excluídos de toda sorte.
Assim, o vadio não é livre, mas uma sujidade e uma inutilidade urbana. A liberdade ela mesma não é livre, mas possuída como um bem que se compra caro – e nem mesmo assim – ou que se expressa pela voz corruptamente comprometida dos que agem em seu nome. Os próprios sequestradores. A verdade não é qualquer engajamento com a idoneidade, com a autenticidade, com o princípio – os princípios tendo todos eles sido igualmente sequestrados – mas um espetáculo ou um circo cuja propaganda é a própria prestidigitação do verdadeiro. Com o efeito de que disso já ninguém mais duvida: sem a mínima humildade, sem o mínimo reconhecimento de seu auto-engodo. A justiça não é qualquer virtude ainda sobrevivente, mas um processo infinitamente repetido nos labirintos de um imperativo. De uma moeda corrente. Que pode ser tudo, exceto justa. Com o efeito de um beco sem saída para todos os injustiçados. Resta a eles o seu sentido mais profundo. Apenas a eles. Com o que também a democracia não é um compromisso coletivo, mas uma etiqueta que legitima as arbitrariedades dos espertos. A esperteza tendo há muito sido univocamente concedida e autorizada àqueles com o manejo das palavras.
Urge proceder ao resgate das palavras. Sem pretensão de guarda. Mas também como um grito de socorro, contra sua exaustiva violência, violação, detenção, enclausuramento. No pleno direito das abertas declarações de sentido, a plenos pulmões, na legitimidade de um pertencimento inequívoco à pluralidade da própria voz, na declamação não estrangulada pelo esquecimento dos sequestros, na lembrança das rimas que não se extraviam mais. Perder um dicionário no meio de um tumulto não é nada. Pior que isso, é a perenidade dos cativeiros, das periferias e dos becos sem saída.

Um comentário:

  1. Em nome de uma sintaxe de alteridades, um grafo grave a questionar pseudo-autoridades.

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