Perder
um dicionário no meio de um tumulto não é nada. Mais do que isso, é já ter
esquecido as rimas, uma declamação feita pela metade, como se o silêncio
subisse estômago acima. Sequestrando a legitimidade de uma voz. Como se àquelas
palavras já não coubesse um pertencimento, fugidias no esvaziamento de seu
espectro antes multicolorido. Com que direito, afinal, fazer uso das abertas
declarações de sentido? A plenos pulmões, também como um grito de socorro. Urge
proceder a um resgate daquelas palavras sequestradas pela univocidade de uma
tradição, de uma ideia, de uma ideologia – muitas vezes falseada ou
escancaradamente debochada – de um projeto de progresso, de uma estabilidade
racional, ou nacional, de um status quo, de um delírio de sabedoria definitiva,
de uma universalização. Palavras sequestradas e alijadas de sua existência
polissêmica e de seu direito de inocência. Como se já não pudessem servir senão
a um propósito de extorsão e paralisia e retrocesso. E ilusão. Com a soberba da
certeza como guardiã de sua clausura. Com o efeito de que disso já ninguém mais
duvida: apropriações supostamente literais à revelia do mundo, à revelia das
próprias palavras e de sua história por recontar. À revelia daqueles que desde
então passam à margem do seu único significado possível. O sequestro das
palavras criando periferias de excluídos de toda sorte.
Assim,
o vadio não é livre, mas uma sujidade e uma inutilidade urbana. A liberdade ela
mesma não é livre, mas possuída como um bem que se compra caro – e nem mesmo
assim – ou que se expressa pela voz corruptamente comprometida dos que agem em
seu nome. Os próprios sequestradores. A verdade não é qualquer engajamento com
a idoneidade, com a autenticidade, com o princípio – os princípios tendo todos
eles sido igualmente sequestrados – mas um espetáculo ou um circo cuja
propaganda é a própria prestidigitação do verdadeiro. Com o efeito de que disso
já ninguém mais duvida: sem a mínima humildade, sem o mínimo reconhecimento de
seu auto-engodo. A justiça não é qualquer virtude ainda sobrevivente, mas um
processo infinitamente repetido nos labirintos de um imperativo. De uma moeda
corrente. Que pode ser tudo, exceto justa. Com o efeito de um beco sem saída
para todos os injustiçados. Resta a eles o seu sentido mais profundo. Apenas a
eles. Com o que também a democracia não é um compromisso coletivo, mas uma
etiqueta que legitima as arbitrariedades dos espertos. A esperteza tendo há
muito sido univocamente concedida e autorizada àqueles com o manejo das palavras.
Urge
proceder ao resgate das palavras. Sem pretensão de guarda. Mas também como um
grito de socorro, contra sua exaustiva violência, violação, detenção,
enclausuramento. No pleno direito das abertas declarações de sentido, a plenos
pulmões, na legitimidade de um pertencimento inequívoco à pluralidade da
própria voz, na declamação não estrangulada pelo esquecimento dos sequestros,
na lembrança das rimas que não se extraviam mais. Perder um dicionário no meio
de um tumulto não é nada. Pior que isso, é a perenidade dos cativeiros, das
periferias e dos becos sem saída.
Em nome de uma sintaxe de alteridades, um grafo grave a questionar pseudo-autoridades.
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