domingo, 14 de agosto de 2016

Fizeram da filosofia um homem


Fizeram da filosofia um homem. E ele é muitas vezes desumano, desencarnado, perplexamente e infalivelmente racional, sem quaisquer traços de animalidade, de emotividade, perceptividade, responsividade, poucas vezes compassivo, jamais passivo, jamais feminino, raras vezes amoroso, pretensamente invulnerável, raramente literário.
Fizeram da filosofia um homem a ponto de se dever enumerar as mulheres que pensam. Atribuindo-lhes uma legitimidade à meia-boca, um cercado vigiado de fora pela lógica pré-determinada de um sexo, uma filosofia própria, de meninas entediadas que não sabem muito bem o que fazer dos livros e das letras e que os carregam como relógios que não funcionam, uma filosofia de mulher, uma filosofia feminina, sempre, então, feminista. Como se nada mais houvesse a ser dito por seu corpo díspar, faltoso, lacunar. Como se nada mais houvesse a ser dito, senão a complementaridade de uma ideia masculina. Como se não pensassem, não fossem jamais capazes de pensar, sozinhas. Há Simone de Beauvoir, mas também Sartre, claro. Há Heloísa, mas também Abelardo, indubitavelmente. E até mesmo Hannah Arendt, com a sombra de Heidegger, claro. Não esqueçamos. Como se não houvesse nada mais além de sua tagarelice ecoando uma fala já feita, já dita, portanto supérflua. Ou bem, antes de mais nada, o seu direito à fala. Por isso, no fim das contas feitas, uma ocupação sempre feminista. Por isso, afinal, sempre solidária.
Fizeram da filosofia um homem, e os seus princípios morais são traços de um caráter macho, que não vacila, que possui o privilégio de uma neutralidade cerebral, imperativa, determinada, impiedosa. De um cálculo somos capazes de salvar a humanidade inteira e até mesmo as outras criaturas numericamente insignificantes da terra; as mulheres e os outros animais; e, pasmem, até mesmo as paisagens da arte; sem qualquer comprometimento mundano, sem caridade ou doação comprometedora, sem aberturas vulneráveis e sem qualquer compromisso amoroso. De um cálculo ou de uma lei somos capazes de salvar a humanidade sem que seja preciso correr o risco de sermos humanos.
Que dirá femininos.
Fizeram da filosofia um menino que pode crescer e construir a própria vida, difundir as próprias ideias, ter suas próprias opiniões e letras e livros. Se sua colega de classe tiver a petulância de pensar, se ela tiver a audácia do incômodo filosófico, se ela tiver a ignorância destemida das multifacetadas autoridades masculinas, se ela tiver a ânsia das perguntas presa à garganta, se lhe for urgente viver a própria atitude, talvez ela possa pensar a si mesma como filósofa.
E se ela fizer de si mesma esta coragem e puder pensar o silêncio, a palavra e o amor absoluto, os seus princípios serão todos humanos, abertos, vulneráveis, comprometidos, literários – que seja, – mas não por isso “femininos”; não por isso “de menina”; não por isso “maternais”.
Fazer da filosofia uma mulher não pode ser sua ocupação. A reivindicação feminista deve aplacar aquela persistente solidão de gênero sem quaisquer tons de rosa.

Um comentário:

  1. Pelo menos, em nossA línguA, é filosofiA. Quem sabe, essa atenção lítero-literária também componha com maior pertinência a afirmação da filosofiA.

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