Fizeram
da filosofia um homem. E ele é muitas vezes desumano, desencarnado,
perplexamente e infalivelmente racional, sem quaisquer traços de animalidade,
de emotividade, perceptividade, responsividade, poucas vezes compassivo, jamais
passivo, jamais feminino, raras vezes amoroso, pretensamente invulnerável,
raramente literário.
Fizeram
da filosofia um homem a ponto de se dever enumerar as mulheres que pensam.
Atribuindo-lhes uma legitimidade à meia-boca, um cercado vigiado de fora pela
lógica pré-determinada de um sexo, uma filosofia própria, de meninas entediadas
que não sabem muito bem o que fazer dos livros e das letras e que os carregam
como relógios que não funcionam, uma filosofia de mulher, uma filosofia
feminina, sempre, então, feminista. Como se nada mais houvesse a ser dito por
seu corpo díspar, faltoso, lacunar. Como se nada mais houvesse a ser dito, senão
a complementaridade de uma ideia masculina. Como se não pensassem, não fossem
jamais capazes de pensar, sozinhas. Há Simone de Beauvoir, mas também Sartre,
claro. Há Heloísa, mas também Abelardo, indubitavelmente. E até mesmo Hannah
Arendt, com a sombra de Heidegger, claro. Não esqueçamos. Como se não houvesse
nada mais além de sua tagarelice ecoando uma fala já feita, já dita, portanto
supérflua. Ou bem, antes de mais nada, o seu direito à fala. Por isso, no fim
das contas feitas, uma ocupação sempre feminista. Por isso, afinal, sempre
solidária.
Fizeram
da filosofia um homem, e os seus princípios morais são traços de um caráter
macho, que não vacila, que possui o privilégio de uma neutralidade cerebral,
imperativa, determinada, impiedosa. De um cálculo somos capazes de salvar a
humanidade inteira e até mesmo as outras criaturas numericamente
insignificantes da terra; as mulheres e os outros animais; e, pasmem, até mesmo
as paisagens da arte; sem qualquer comprometimento mundano, sem caridade ou
doação comprometedora, sem aberturas vulneráveis e sem qualquer compromisso
amoroso. De um cálculo ou de uma lei somos capazes de salvar a humanidade sem
que seja preciso correr o risco de sermos humanos.
Que
dirá femininos.
Fizeram
da filosofia um menino que pode crescer e construir a própria vida, difundir as
próprias ideias, ter suas próprias opiniões e letras e livros. Se sua colega de
classe tiver a petulância de pensar, se ela tiver a audácia do incômodo
filosófico, se ela tiver a ignorância destemida das multifacetadas autoridades
masculinas, se ela tiver a ânsia das perguntas presa à garganta, se lhe for
urgente viver a própria atitude, talvez ela possa pensar a si mesma como
filósofa.
E
se ela fizer de si mesma esta coragem e puder pensar o silêncio, a palavra e o
amor absoluto, os seus princípios serão todos humanos, abertos, vulneráveis,
comprometidos, literários – que seja, – mas não por isso “femininos”; não por
isso “de menina”; não por isso “maternais”.
Fazer da filosofia uma
mulher não pode ser sua ocupação. A reivindicação feminista deve aplacar aquela
persistente solidão de gênero sem quaisquer tons de rosa.
Pelo menos, em nossA línguA, é filosofiA. Quem sabe, essa atenção lítero-literária também componha com maior pertinência a afirmação da filosofiA.
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