Tudo
começou com a letargia de uma tarde insuportável. Todos os problemas do mundo e
um sofá queimando as costas de um corpo ainda completamente impensado. Fazendo
o que ali, com aquele tempo à toa, vagabundeando com os olhos no teto, com os
olhos chorosos de quem perdeu o rumo. O rumo das coisas que se fizeram à sua
revelia. Uma preocupação. Uma pré-ocupação. Antes mesmo de qualquer ocupação de
verdade. Porque havemos de nos ocupar sempre, não é mesmo? O corpo que jaz
inerte apesar da vida é aí uma impossibilidade. O lamento inativo pelo mundo
perdido uma inutilidade. Mas não és uma filósofa! Não, não era. O mundo
desabando ao redor, e não se podia fazer nada. O planeta se consumindo e
desaparecendo, e não se podia fazer nada. A letargia de todos como a imobilidade
daquela tarde. Sentida na própria pele. Mas se a política da pobreza era
primeiro sobreviver, depois se lamentar. Depois pensar. Depois escrever. O que
se sentia na própria pele era a urgência de uma questão de vida ou morte. O que
fazer de si mesma neste mundo dividido? “Si mesma”, quem? A menina? Que sabia
ela de ser menina? A filósofa? Mas não és uma filósofa!
A
questão de vida ou morte não estava posta para seu corpo – a não ser no peso
que se abatia sobre sua mobilidade. Daí a letargia. A morosidade. O choro.
Estava
posta para sua existência assexuada. Para seu ser ocupado em sentir a unicidade
do mundo. Isso que fazia de si também o pobre, o soldado, a árvore, o gato, os
fantasmas, os imigrados de há mais de um século. Que sexo atribuir a tudo isso
que se funde? Que sentido atribuir às indiferenciações do seu olhar para o teto
como quem chora por todos os outros?
De
qualquer modo, não dava tempo de ficar separando as coisas, os seres, entre
meninas e meninos, machos e fêmeas, filósofas e filósofos. A urgência da
questão era para ser pensada como humanidade. Ponto final. E era assim que se
colocava a questão da vida, que ela mesma nem era pensada como feminina, a
vida. O que fazer dali para a frente? O que fazer de si mesma? Com que corpo?
Mas, sobretudo, com que atitude? Uma interrogação? (Uma interrogação!) Uma
história? Uma invenção? Uma coragem? Uma palavra?
Não
dava tempo de ficar com medo de andar sozinha, de seguir pela cidade, pela
infinidade de caminhos possíveis, como a coisa mais normal do mundo. De ser
líder de classe, autodidata, escritora, tutora do grupo de teatro, atriz,
carateca, nadadora, poliglota. Não dava tempo de ficar com medo. A vida, essa
femininidade que tão tarde teve um sexo, acabava logo, a começar pelos dias
insuportáveis de letargia filosófica. Então, não dava tempo de ficar se
perguntando quem podia.
Não
era essa a questão que se colocava.
Pensar
o silêncio, a palavra e o amor absoluto. Era isso. E isso não tinha gênero. A
violência e a urgência da questão não tinham gênero.
Era
preciso fazer, agir, pensar, porque tudo acabava logo. E nada disso tinha
gênero. Então não dava tempo de pedir licença, permissão, autorização – e para
quem, afinal?
Como
a coisa mais normal do mundo, construir a própria vida. Como o faziam todos os
homens, todos os filósofos, todos os meninos. Furiosamente. Irreparavelmente.
Até o ponto em que seu ser feminino se visse só, numa solidão gênero, a única
designação “a” de uma filosofia inteiramente, opressivamente, arrogantemente
masculina.
Uma
solidão de gênero.
Que
sabia ela de ser menina? Teria sido tão ingênua a ponto de cegar-se para todas
as barreiras? Não teria visto o escárnio sobre sua petulância, a ojeriza sobre
sua suposta bravura, o horror de seu ímpeto “de menino”? Teria sido tão indiferente,
tão insensível, a ponto de ignorar o universo periférico das mulheres, das
mães, das filósofas? Que faria, agora, sozinha, com sua atitude, sua
interrogação, sua história? Teria sido tão pouco solidária, tão pouco atenta às
mulheres que iam ficando pelo caminho?
Que
sabia ela de ser filósofa? Mas não és uma filósofa! Que sabia ela dessa
diferença? Teria sido tão egoísta assim? Não teria sido, jamais, feminista?
Não.
Ela sabia dos baús repletos de perda trazidos mar adentro. As bisavós enterradas
para sempre sob suas vidas de sol e agonia. Sem qualquer piedade masculina. As
avós magoadas para sempre por suas vidas de diferença. Ela sabia das injustiças
nas suas histórias, das suas histórias de gênero marcado. Teria sido tão pouco
solidária? Tão pouco atenta?
Não.
Não.
Tratava-se, muito antes, da empáfia do pagamento de uma dívida. A ocupação de
um lugar a nós sempre, continuamente, usurpado.
Por conta desses "baús repletos de perda trazidos mar adentro" certamente ainda emerge uma ou outra bolha da beleza. E isso é dom da menina-que-se-sabe solidária. Parabéns, minha cara Janyne.
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